Um país que “não sabia de nada”: higienismo, limpeza étnica e ingenuidade conveniente na música e na sociedade da Alemanha nazista


            Falar a respeito do regime nazista e das atrocidades cometidas por seus membros facilmente nos evoca a pergunta: e o povo alemão, não sabia de nada?
            Por mais que os assassinatos em massa tenham sido mantidos em segredo, a limpeza social feita pelo partido, – seja por prisão, exílio forçado, expulsão ou assassinatos corriqueiros visíveis a todos – de judeus, ciganos, comunistas, social-democratas, pacifistas, estrangeiros e quaisquer pessoas consideradas como “outros”, beneficiou abertamente a todos que preencheram os espaços deixados na sociedade alemã por aqueles que se foram.
            A tão alegada ingenuidade não passa de uma atitude conveniente para quem foi socialmente beneficiado com a infelicidade dos que tiveram que partir ou foram eliminados. Sabendo ou não do extermínio, cada trabalhador que conseguiu um emprego melhor por vacância forçada, cada funcionário público contratado no lugar de um não alemão demitido, cada empresário, comerciante ou mesmo artista que se beneficiou pela ausência de competidores tirados do páreo, indiretamente se beneficiou das barbáries do regime.
No campo da música esse tipo de acontecimento foi recorrente. Levi, em Music in the Third Reich, ao apontar para um impasse que a proibição de música de autores judeus criou no cenário alemão nazista, cita o exemplo do veto à performance da música escrita por Mendelssohn para a frequentemente representada peça “Sonho de uma noite de verão”, de Shakespeare, e denuncia que tal situação abriu espaço para compositores alemães “puros” tentarem oportunamente projetar suas carreiras se aproveitando da situação e escrevendo música em substituição à partitura do compositor judeu, porém, sem alcançar o mesmo sucesso (LEVI, 1994, p.73).
            Esse exemplo do autor inglês demonstra como as proibições de atuação, de performance ou produção de música por judeus ou da música de jazz, geraram um cenário de esvaziamento da vida artística nas grandes cidades alemãs.

Concerto na Alemanha nazista

Mais um exemplo dessa limpeza étnica no campo musical, abrindo caminho para músicos alemães que anteriormente não haviam conseguido espaço no campo profissional, aparece no filme Taking Sides, de István Szabo (2001), na figura de Helmuth Alfred Rode, 2º violinista na Filarmônica de Berlim durante o Reich que, segundo a fala do personagem no filme, só conseguiu tal posto devido à perseguição e proibição dos judeus de atuarem no país. Aliás, embora o personagem de Rode seja um exemplo certeiro dessa “ingenuidade conveniente” que estamos tratando, no fundo o filme como um todo se entrelaça com o assunto que estamos abordando neste texto, pois seu enredo se desenvolve em torno do interrogatório realizado por um oficial estadunidense com o regente Wilhelm Furtwängler a respeito do envolvimento desse músico com a cúpula do regime e da inviabilidade de um cidadão com sua notoriedade de passar incólume por um regime como aquele, afinal, como a trama do filme nos leva a perceber, desenvolver um trabalho de diretor de uma orquestra importante num Estado ditatorial como o do Nacional Socialismo inevitavelmente o obrigava a manter estreitas relações com figuras de poder, submetendo-se a seus caprichos muitas vezes. Por outro lado, sua posição de músico admirado (até mesmo por Hitler), provavelmente possibilitou-lhe privilégios e proteções que a outros não seriam concedidas, como por exemplo, a não punição por ter fornecido ajuda para judeus em risco.


Furtwängler regendo

A limpeza étnica no campo musical tratada neste texto conecta-se com algumas especificidades centrais ao regime do Nacional Socialismo. A música adquiriu importância capital no nacionalismo construído na Alemanha ao longo de todo o século XIX (ou mesmo antes), a tal ponto de se edificar o mito da Alemanha como o “país da música”, sendo esta uma “tradição inventada” (HOBSBAWN & RANGER, 1997, p.9) tomada como símbolo identitário alemão. Também associada ao tema está a eugenia, ou seja, a prática para se atingir a “raça pura”, que era tida como “cientificamente comprovada” na época. Lado a lado com esse racismo científico vinha o higienismo, procedimento proveniente do campo da saúde pública que, dependendo da ideologia por trás das políticas de saúde, facilmente se converte em práticas de limpeza social.
Amparadas nessas noções, as políticas culturais que geraram as repressões no campo da música ao longo do regime tiveram antecessores diretos bem antes da ascensão do partido nazista ao poder, em 1933. Levi (1994) identifica músicos e intelectuais que, ao longo da República de Weimar (1919-1933), defenderam ideais que foram incorporados à política cultural do Nacional Socialismo. Um desses foi o compositor Hans Pfitzner que, preocupado com a preservação da honra e da identidade nacionais abaladas com a derrota na Primeira Guerra Mundial, publicou em 1920 um artigo denominado “A nova estética da impotência musical – um sintoma de decadência?”, no qual atacava a música moderna, estabelecendo
paralelos entre a decadência artística e a desintegração nacional, comparando o que ele chamava de “caos atonal” da música moderna com o “bolchevismo”. A cultura alemã, ele declarava, estava sob ameaça do judaísmo internacionalista. (LEVI, 1994, p.4).
O texto de Pfitzner exerceu importante influência na reação musical conservadora, refletindo em textos de outros intelectuais, como Reinhold Zimmermann, que, no artigo “O espírito do internacionalismo na música”, também de 1920, ataca a “conspiração do internacionalismo judaico destruindo a identidade da música alemã”, apontando Mahler e Schoenberg como “forças negativas” (LEVI, 1994, p.4). Mais um intelectual da época influenciado por esse pensamento foi Karl Storck, que propôs que a geração jovem de compositores alemães tomasse como referência Bruckner e Reger, em contraposição ao internacionalismo vigente na política cultural da República de Weimar. Ao longo da década de 1920 tais ideias vão sendo reiteradas e ganham força, o que ocorre principalmente a partir da reabertura do Festival de Bayreuth, que se erige como símbolo do nacionalismo extremado, fazendo frente ao ambiente cultural estabelecido na República de Weimar. Bayreuth e seu culto à figura de Richard Wagner e os valores nacionalistas que ele representou viria a ser um ponto de reunião de personalidades que na década seguinte seriam elementos chave no regime totalitário que se instalaria. Uma dessas personalidades era Alfred Rosenberg, que viria a ser uma das figuras centrais do regime, conselheiro de Hitler e Ministro do Reich nos territórios ocupados do leste, cujo livro “O mito do século XX” serviria de base teórica para o Nacional Socialismo. Em 1929 Rosenberg criou a “Liga de Luta pela Cultura Alemã”, que defendia uma “interconexão entre arte, raça, conhecimento e valores morais” (LEVI, 1994, p.9).
Outro indivíduo que se destacou nesse período foi Hans Severus Ziegler, que, estando no breve governo nazista na Turíngia, no ano de 1930, na pasta da Educação, contribuiu para a extinção da Bauhaus e na proibição da performance de músicas de jazz e de compositores como Stravinsky e Hindemith. Para este homem, a “única solução para os compositores contemporâneos alemães era fugir do ‘construtivismo cerebral’ e reafirmar sua fé no poder elemental da canção popular, à maneira dos grandes mestres” (LEVI, 1994, p.12). O sonho de Ziegler era a construção de uma “comunidade de músicos arianos – compositores, regentes, agentes, produtores de ópera, editores de música – trabalhando em harmonia no novo ambiente político do Terceiro Reich” (LEVI, 1994, p.12). O sonho de Ziegler perdurou e em 1938 ele encabeçou a Exposição de Música Degenerada (Entartete Musik), realizada em Düsseldorf, idealizada logo após a ocorrência da Exposição de Arte Degenerada, em Munique. Nessa mostra esse diretor cultural centrava seus ataques à música erudita contemporânea da época e ao jazz, exibindo, principalmente, retratos e fotografias de compositores como Schoenberg, Stravinsky, Webern e Krenek, compositores de operetas judaicas, como Oscar Straus e Leo Fall, bem como ataques ao jazz, acompanhadas de difamações que colocavam em questionamento o caráter e as origens raciais de cada autor.

Cartaz anunciando a Exposição de Música Degenerada

Ziegler ilustra bem a obsessão generalizada pelo ideal de pureza que a crença na ideia radicalizada da raça superior ariana instilou na cultura do Nacional Socialismo alemão. Higienizar, ou seja, substituir o “impuro” pelo “puro”, era uma palavra de ordem e tal objetivo havia de ser alcançado por quaisquer meios possíveis, inclusive a eliminação de pessoas, caso fosse julgado como necessário. Como diz Paxton, regimes totalitários como o Nacional Socialismo “não viam a arte como o território da livre criatividade, mas sim como um recurso nacional, sujeito a um estrito controle por parte do Estado” (PAXTON, 2007, p.231).
            Tratamos o conceito de limpeza étnica até aqui olhando para suas consequências no universo musical dentro da Alemanha nazista. Levado ao extremo, esse ideal produziu barbáries aterrorizantes, como o amplamente conhecido extermínio dos judeus. Mas, dado que todas as populações (“raças”, conforme o uso corrente da época) não alemãs eram consideradas “raças inferiores” pelos nazistas, outros povos também sofreram atrocidades de igual repugnância àquelas perpetradas contra a comunidade judaica.
            Entre essas populações estavam os povos eslavos, tidos pelos nacional-socialistas como povos indesejados habitando um território que era de interesse alemão, um espaço que era almejado ser usado para a expansão da população alemã nas gerações vindouras. Após dominar quase toda a Europa, Hitler rompeu o pacto de não agressão com Stalin e invadiu o território soviético em 1941, na chamada Operação Barbarossa, assassinando e escravizando porções significativas das populações locais.
Robert Paxton, em A anatomia do fascismo aponta que a guerra era um elemento essencial aos regimes fascistas. Tais regimes não podiam abrir mão dela, pois é próprio ao fascismo a incitação deliberada de expectativas de dinamismo, excitação, ímpeto e risco, sendo a guerra constante um campo privilegiado para a satisfação de tais exigências. Por esse mesmo ponto de vista pode-se compreender a valorização do uso da violência nos regimes fascistas, prática essa que acompanha a ascensão dos partidos nazifascistas ao poder. Além de judeus e esquerdistas, entre outros grupos, pacifistas eram um dos alvos prediletos de intimidação por parte dos brigões de rua que compunham os partidos fascistas. Ainda conforme Paxton, o “fascismo idealizava a violência de forma característica, como uma virtude inerente à raça superior” (p. 278), ela era vista como uma prática desejada e louvável, e não como um ato ilícito e reprovável. Fora, inclusive, saudada como atitude bela, como uma arte, pelos futuristas italianos, apoiadores do fascismo.
O uso da violência foi levado ao extremo na invasão do leste europeu pela Alemanha de Hitler. Lá, longe dos olhos do ocidente ou da fração conservadora moderada alemã, os membros radicais do partido puderam exercer seu desejo de sangue sem limitações. Para a ideologia racial germânica nazista os povos eslavos eram uma raça inferior, em relação à qual o uso da violência era uma atitude considerada legítima, numa luta de caráter darwinista na qual a raça superior ariana estava fadada a vencer e se impor.
A invasão da Bielorrússia foi um exemplo dessa prática, onde episódios de uso extremo de violência, sem restrições, foram registrados em muitos vilarejos. O filme soviético Come and see, dirigido por Elem Klimov, em 1985, retrata os fatos ocorridos em um dos vilarejos daquele país no ano de 1943. Vista a partir dos olhos de um adolescente da localidade, a obra traz cenas impactantes como a que mostra a população de um pequeno povoado ser trancada dentro de uma igreja e queimada viva.

Cena do filme "Come and see"

Mais de 600 vilarejos foram similarmente dizimados pelos alemães naquele país. Essa era a prática da limpeza étnica, por meio da qual se eliminava a população local liberando o espaço para posteriormente ser colonizado por camponeses alemães. O intuito era eliminar aqueles povos, os “outros”, assim como sua história e povoar os territórios entendidos pelos arianos como seus por direito. Era a conquista do “espaço vital” alemão aclamado pelo Führer, que seria ocupado pelos alemães “puros” (e “ingênuos”, que nada sabiam do que acontecia com os “outros”).


Michael Kelloggs, em seu livro “The russian roots of Nazism”, levanta uma hipótese que adiciona um elemento novo para a explicação a respeito da extrema violência exercida nos territórios soviéticos ocupados pelos alemães. O autor propõe que os nacional socialistas foram influenciados por imigrantes dissidentes da União Soviética que eram pró-monarquistas e ofereceram resistência ao regime vermelho. Segundo a hipótese de Kelloggs, esses elementos, oriundos do “exército branco” russo, tendo fugido para a Alemanha após a derrota na Guerra Civil Russa, teriam instigado e apoiado os nazistas a dirigirem parte importante de seus esforços destrutivos à invasão da União Soviética, identificada como o centro de uma suposta coligação judaico-bolchevique-internacionalista que afrontava os ideais arianos. Este ponto de vista seria um possível fator de explicação para o tamanho ódio dirigido aos habitantes daqueles países.
Porém, houve discrepâncias nesse processo de dominação. Nem todas as populações foram tratadas com tamanha violência. O filme Enemies, dirigido pela russa Maria Mozhar, no ano de 2007, mostra uma ocupação alemã muito menos violenta no mesmo país. Nesse filme os soldados e oficiais alemães interagem com os habitantes do vilarejo, cortejam as moradoras, barganham com os andarilhos e mesmo se envolvem emocionalmente com os nativos. A trama do filme, inclusive, gira em torno do impasse que o comandante da ocupação local se encontra ao ter que mandar executar moradores que transgridem as leis impostas, tomando tal decisão contra sua vontade após grande exitação diante de ordens de seus superiores. Encontramos uma explanação para essa diferença de comportamento das forças de ocupação em Paxton, que explica que o Estado nazista era um “Estado Dual”, composto por uma interação de fascistas e de conservadores: o “Estado normativo e o Estado prerrogativo conviviam numa cooperação conflituosa, embora mais ou menos competente, conferindo ao regime sua bizarra mistura de legalismo e de violência arbitrária” (PAXTON, 2007, p.201). No entanto, mais ainda que essa definição de “Estado Dual”, o regime nazista, assim como o Fascismo italiano, tinha criado o que o autor chama de “organizações paralelas”, significando instituições de centros de poder que já existiam no Estado instituído sendo duplicadas por uma correspondente, mas, com o diferencial de que as “duplicatas” eram formadas por membros do partido (PAXTON, 2007, p.207). Voltando ao filme citado, a diferença consiste em que os grupos militares que mais amplamente atuaram no leste europeu, como retratado no filme “Come and see”, eram predominantemente de instituições do partido, atuando de maneira prerrogativa, realizando seus atos sanguinolentos sem limites éticos, enquanto os grupos militares estatais tradicionais, como os que fizeram a ocupação retratada no filme “Enemies”, ainda mantinham algum critério de civilidade e de moderação, dado que seus integrantes vinham dos conservadores, a elite tradicional que, apesar de ter se aliado aos nazistas para impedir a participação no poder de grupos de esquerda, ainda assim guardavam valores diferentes dos arrivistas de Hitler.
Enfim, neste breve texto foram tecidos sucintos comentários a respeito das práticas de limpeza étnica durante o regime nazista no campo interno da vida musical alemã e também no exemplo mais cruel do termo no caso das populações dos territórios ocupados no leste europeu.
As reflexões levantadas apontam para a inviabilidade de dizer que a população alemã não sabia de nada a respeito do que acontecia, dado que ela mesma era beneficiada pela supressão dos demais cidadãos considerados como indesejados pelo regime. Se, por um lado, é factual que o povo não sabia do genocídio, por outro, no cotidiano era visível o desaparecimento de parcelas da população, particularmente os judeus. Não se trata aqui de culpar a população de passividade, afinal, sabe-se que qualquer um que se insurgisse contra o regime quase certamente seria também eliminado. Porém, conforme argumentado ao longo do texto, essa ingenuidade que muitas vezes se atribui ao povo alemão não pode ser sustentada, pois a eliminação dos perseguidos gerou benefícios sociais para muitos alemães “puros”, como os exemplos do campo musical levantados no texto comprovam. O silêncio dos que ficavam era vantajoso não somente para sua segurança quanto para sua posição social.


REFERÊNCIAS

COME and see. Direção: Elem Klimov. União Soviética, 1985 (142 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oDq9fL--Avw&t=196s

ENEMIES. Direção: Maria Mozhar. Rússia, 2007 (78 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7pBA0FFplxY&list=WL&index=120&t=426s

HOBSBAWN, E. & RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

KELLOGG, M. The russian roots of Nazism: White Émigrés and the making of the National Socialism – 1917-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

LEVI, E. Music in the Third Reich. Londres: Palgrave Macmillan, 1994.

PAXTON, R.O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

TAKING Sides. Direção: István Szabo. Alemanha, 2002 (95 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4KpP4Wx2Ar4

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