A arte em socorro do mundo pós-pandemia


A maior contribuição que a arte oferece à experiência humana é o seu caráter sistêmico, que possibilita aos seres humanos se conectarem simultaneamente com diversos aspectos de sua realidade, como a intuição, o sentimento, o pensamento, a razão e as diversas percepções sensoriais, os quais coexistem na arte sem que um prevaleça sobre os demais. Todas essas percepções do mundo, tanto as intuídas, quanto as racionalizadas, abstraídas, imaginadas, vividas emocionalmente ou reconhecidas pelos cinco sentidos, se relacionam no interior de uma obra ou performance de arte e convidam o espectador/observador/ouvinte a interagir com elas enquanto ele mesmo constrói e oferece um novo significado para essa obra ou performance, enriquecido com sua própria experiência.
A natureza polissêmica da arte, possibilitando a existência simultânea de diversos significados para uma mesma obra ou ação artística, é uma característica que nitidamente a diferencia do pensamento linear-lógico-racional da ciência cartesiana que domina nosso mundo.
Diante de um momento desolador, de instabilidade mundial, com o fantasma da morte batendo às nossas portas, decorrente da pandemia de Covid-19, sabemos que, se tivermos sanidade em nossas decisões, nossas vidas não poderão mais ser conduzidas da mesma forma que eram antes, quando o problema passar.
O mundo fundado sobre o acúmulo de capital (para poucos) e sobre o consumismo desenfreado precisará ser radicalmente transformado. Novos valores, tanto no nível da vida cotidiana, quanto nas macro relações terão que ser reformulados.
O que se aponta até o momento é que o coronavírus SARS-CoV-2 tenha se originado de animais [1] (pangolim como hospedeiro intermediário e morcego como originário) que habitavam matas que foram devastadas, ocasionando que eles passassem a ter mais contato com os seres humanos, resultando assim na introdução desse microoganismo no corpo humano e sua consequente mutação para uma forma que produz a doença que está nos acometendo agora. Se esta hipótese estiver certa, o surgimento da pandemia, portanto, está intrinsecamente ligado ao problema do desequilíbrio ecológico.



A realidade que vai emergir desta situação necessariamente será a de um mundo transformado. Embora já tenham ocorrido outras pandemias no passado e a chamada gripe espanhola [2] provavelmente tenha sido mais letal que a Covid-19, ainda assim, dado nosso cenário atual, os efeitos desta crise serão, provavelmente, semelhantes aos das grandes guerras mundiais. Mudanças no cenário mundial se processarão, afetando os âmbitos político, social e econômico. Esperemos que também ocorra no âmbito cultural, com uma transformação na maneira com que as pessoas lidam com a vida e com o planeta.
As duas grandes guerras do século XX geraram imensas transformações no mundo. A Primeira Grande Guerra, entre 1914 e 1918, além do rastro de mortes que abalaram a geração europeia da época, trouxe como consequências a incerteza quanto à tradição de pensamento iluminista que norteava a cultura ocidental e a derrubada de diversos governos e impérios que pareciam invencíveis. Ela também trouxe, como consequências posteriores, a Grande Depressão e a ascensão dos movimentos fascistas. A Segunda Grande Guerra, estendendo-se de 1939 a 1945, pôs fim à marcha nazi-fascista que ganhara força no Entre Guerras e abriu caminho para um período de esplendor para os regimes democráticos desenvolvidos da Europa Ocidental e da América do Norte, a chamada “Era de Ouro” do capitalismo, conforme argumenta o historiador Eric Hobsbawn [3]. Essa “Era de Ouro” foi sedimentada na construção do “Estado de Bem-Estar Social” nessas democracias, ou seja, a construção de políticas públicas voltadas para a atenção das necessidades sociais, de saúde, de habitação, de transporte, de educação, de cultura, de renda, de trabalho e de previdência dos cidadãos.
Os exemplos desses dois acontecimentos são bastante elucidativos para nossa situação presente. Enquanto ao fim da Primeira Grande Guerra não houve um grande projeto de retomada, por outro lado, em 1945 os vencedores trataram de elaborar a reconstrução das sociedades (ao menos das europeias ocidentais) que estiveram no epicentro da guerra, de forma que não se possibilitasse a ocorrência de uma nova guerra no futuro próximo, como tinha sido o resultado desastroso após 1918.
Desta maneira, tomando esse exemplo das duas guerras mundiais do século XX e a maneira com que seus contemporâneos sobreviventes lidaram com os seus resultados, fazemos a suposição de que podemos inferir dois possíveis mundos após a pandemia de Covid-19: um no qual uma reação negativa e destrutiva possa tomar conta, como ocorreu após 1918, e outra, a exemplo de 1945, na qual políticas públicas sólidas de bem-estar social foram desenvolvidas, tendo o Estado como ator principal.
Portanto, o mundo que queremos deve ser construído desde já. Como tem sido visível na contestação da quarentena por parte daqueles que não respeitam a vida, como o atual presidente brasileiro, há duas posições principais em embate: a dos que querem proteger a vida e a daqueles que estão mais preocupados com a economia do que com os seres viventes que fazem essa economia funcionar.
A saída que valoriza a vida e um mundo melhor consiste na recusa do mundo como ele vinha sendo gerido até o início da pandemia, ou seja, numa recusa do sistema que a provocou. A outra corrente, que está defendendo o retorno à “normalidade” está interessada nos ganhos econômicos à custa das vidas dos explorados: são políticos e empresários que querem empurrar os trabalhadores para correrem riscos em seus postos de trabalho.
No entanto, é óbvio que os detentores de privilégios no formato de mundo em que vivíamos, mundo esse que eles acham que retornará, desejarão que as coisas voltem a ser como antes. Aliás, uma das alternativas, conforme já citado, é que as coisas fiquem ainda mais fáceis para eles, dado que no momento, impossibilitadas de trabalhar, algumas pessoas (privilegiadas) estão em regime de trabalho home office (apesar de tantas outras, principalmente as que exercem funções menos privilegiadas, terem sido demitidas ou terem seus salários diminuídos ou suspensos temporariamente). Obviamente, esta é uma condição (lamentavelmente, porém não inocentemente, utilizada em uma nomenclatura inglesa) que se aplica principalmente para trabalhos considerados como “mais dignos”, enquanto os motoboys, motoristas de uber, trabalhadores de supermercados, entre outros explorados, continuam a exercer suas funções como exerciam antes, apesar do risco sanitário. Na vida em quarentena, a ênfase na tecnologia está ainda mais presente, assim como a vida precariamente vivida na virtualidade dos whatsapps, facebooks e instagrams. A educação à distância está invadindo o cotidiano das pessoas e as redes de ensino particulares sairão da crise acreditando que podem, mais ainda, impor essa modalidade daqui em diante, de forma a enxugar seus gastos com professores presenciais qualificados. Enquanto isso, na internet, ideólogos manipuladores exibem textos glorificando as “benesses” da tecnologia escravagista que está nos “salvando” durante a epidemia e nos dizendo que “para nosso bem” tudo será diferente após a pandemia porque já estaremos preparados para um uso “mais sofisticado” dessas tecnologias. Eles escondem o fato de estarem a serviço das grandes corporações e que, mais que um auxílio neste momento, o que esses elogios à dependência extremada dos recursos tecnológicos estão realizando é uma preparação para uma vida de ainda maior sujeição das pessoas a esses aparatos e, consequentemente, de maior precarização do trabalho, das relações e da experiência de vida das pessoas. Em suma, não somente uma continuação da vida como ela estava até o final do ano de 2019, porém, ainda mais, uma ampliação desse sistema que nos levou à extrema desigualdade, à espoliação dos trabalhadores, à banalização dos costumes e à extrema degradação da natureza.
Ou seja, se a vida já estava precária, com todos os tentáculos da pós-modernidade doentia e escravizadora nos englobando, na virada para essa quase súbita crise sanitária esses tentáculos se multiplicaram e nos alcançaram já sem nenhuma possibilidade de resistência. É de se esperar que as corporações que baseiam sua cada vez maior rentabilidade à custa do empobrecimento de um crescente contingente de pessoas sairão da pandemia crentes em sua possibilidade de expansão e dominação sem precedentes sobre a sociedade. Elas usarão toda a sua força, toda a sua capacidade de persuasão para o fortalecimento da vida virtual e digital, da educação à distância, do trabalho mais ainda precarizado, da contenção de gastos, da uberização, do home-office, da descartabilidade e do consumismo sem limites, todas essas táticas para o aumento dos ganhos que colocam em andamento o mito do crescimento econômico infinito, típico da fábula da economia liberal.
Porém, é provável que o mundo não continue a ser o que era antes. Mudanças varrerão o planeta. Já há previsões de ondas de fome e miséria como nunca antes ocorreram. O cenário político provavelmente será reformulado, com a necessidade de políticas de intervenção estatal na economia mais intensas. A hegemonia global estadunidense possivelmente sairá abalada, dado que seu modelo de sociedade visivelmente não pode dar resposta a um estado de calamidade como este. O país, neste momento em que escrevo, início de maio de 2020, é o mais impactado pela pandemia. Possivelmente tal situação venha a gerar consequências na sociedade estadunidense após o fim da epidemia e, se decisões responsáveis vierem a ser estabelecidas, esse país adotará uma política de saúde mais justa, que atenda à totalidade de sua população nas próximas décadas. Quanto ao resto do mundo, provavelmente deixará de tomar o modelo de sociedade estadunidense atual como exemplo, tratando de construir políticas sociais e sanitárias que provenham cuidado às suas populações e que deixem suas sociedades preparadas para responder satisfatoriamente a eventos futuros dessa proporção.
            O mundo pós-epidemia precisará rever seus valores. Além do investimento maciço nos setores de saúde e social, será necessário, para que nos protejamos no futuro, rever a maneira com que nos relacionamos com a natureza. Os epidemiologistas já avisavam há muito tempo sobre o risco da eclosão de uma grande pandemia. Os ecologistas, também há muito tempo, advertem quanto às mudanças climáticas e seus enormes riscos. Se é indubitável que precisamos revalorizar a ciência, por outro lado, temos que pensar em qual modelo de ciência colocaremos nossa ênfase. A ciência cartesiana, aliada com o mito do progresso e do crescimento econômico sem limites, que tem na crença na tecnologia seu impulso principal, não vai nos livrar de novas catástrofes. Pelo contrário, ela é responsável pelo estado ao qual chegamos.
Uma nova maneira de viver precisa ser inaugurada pela sociedade ocidental. Uma vida de renúncia, de retorno à simplicidade, de valorização das pessoas e da natureza precisa ser enfatizada. Ao invés do crescimento econômico, o desenvolvimento humano. No lugar da superação da natureza, a busca pela harmonia. Precisamos promover, agora inelutavelmente, a transição para uma sociedade humana que viva em equilíbrio com os ciclos da natureza, conforma nos ensina a Ecologia. É necessário que percebamos que toda a vida no planeta se articula em rede, como nos aponta Fritjof Capra [4], e que nossa espécie é a única que se opõe, “furando” os ciclos naturais com nossas atividades econômicas insustentáveis, baseadas em imenso dispêndio de energia e produtoras de resíduos que não são aproveitáveis.
            Nessa nova missão que se faz premente para todos nós, não estamos desamparados. Há uma extensa literatura científica do campo da Ecologia que pode nos amparar. Temos também um enorme manancial cultural de diversas sociedades não-ocidentais que vivem em harmonia com o meio ambiente. Existe ainda o exemplo da cultura ocidental pré-moderna, que era calcada numa coexistência mais equilibrada com a natureza.
            Além desses exemplos não devemos nos esquecer do campo da Arte. As artes sempre ofereceram à humanidade maneiras alternativas de se sentir e se relacionar com o mundo. No entanto, a cultura ocidental, principalmente aquela que se constituiu na modernidade, pautada no cartesianismo e sua separação entre mente e corpo, deu ênfase para a ciência mecanicista, centrada na matemática. Embora moribundo, dado que o pensamento cartesiano já foi contrariado em vários campos da própria ciência, inclusive na Física – que era a ciência dominante na era Moderna –, essa visão ainda mantém um grande poderio, ditando as maneiras de viver na cultura ocidental. E, dentro dessa lógica de pensamento, tudo que se afasta do pensamento lógico e racional é considerado de menor valor, como é o caso das artes. Na hierarquia desse mundo cartesiano no qual o capitalismo se desenvolveu e levou ao extremo, as artes são consideradas atividades sem valor, sendo reconhecidas apenas por suas possibilidades de fornecer entretenimento e retorno financeiro à indústria cultural estabelecida. O artista é tido como um vagabundo. Não é raro, quando nos apresentamos como artistas, a maioria das pessoas nos perguntarem coisas como: “sim, você é artista, que interessante! Mas, qual a sua profissão?”
            A depreciação da arte reflete os valores que a cultura ocidental elevou a um mais alto patamar.
            A valorização da arte poderia nos restituir valores que poderiam prover maior sentido às nossas vidas e diminuir a ênfase na produtividade, no empreendedorismo e no hedonismo pregados pela cultura consumista. O exercício da imaginação, a abertura de novos canais em nossa psique para a percepção do mundo e de nossas potencialidades enriqueceria nossa experiência de vida e nos encaminharia para uma nova maneira de viver, distante da ênfase no tecnicismo, do fetiche da tecnologia e das crenças no progresso e no acúmulo material.
            Uma maior valorização das artes nos encaminharia para um posicionamento no mundo mais voltado para a experimentação de sensações, para a imaginação, para a convivência e o compartilhamento de experiências do que o foco atual na produção material, no narcisismo, na desresponsabilização, na dessensibilização coletiva e na competitividade.
            Enfatizar a arte significa escolher a criação em detrimento da violência e da destruição, que estão em evidência em nosso tempo. A arte foca na invenção de novos mundos possíveis.
            Valorizar a arte, portanto, pode oferecer um canal de enriquecimento para as vidas das pessoas, permitindo-lhes perceber outras formas de se viver a vida, desenvolver seu potencial humano e ampliar os canais de comunicação com os outros e com o meio em que vivem.
            Devemos, no entanto, reconhecer que valorizar a arte é valorizar os artistas, que são tratados como cidadãos inferiores, aos quais não são disponibilizadas formas dignas de sobrevivência. O que se chama de arte na cultura consumista atual é quase sempre sinônimo de entretenimento, ou seja, passatempo com finalidade de alienação e mais um instrumento de acumulação de capital, dado que o entretenimento sempre envolve o lucro. A arte envolve o desenvolvimento pessoal e uma maior maturidade dos apreciadores, enquanto o entretenimento funciona apenas como distração e alucinógeno.
            Desta maneira, caso a humanidade realmente acorde da letargia do consumismo e se conscientize que a estrada pela qual essa escolha nos conduz já aponta para um terrível fim de linha, as experiências pessoais e o desenvolvimento humano que a arte propicia podem ser um ponto favorável para um desviar dos trilhos daqui em diante.
Que o mundo pós-pandemia seja também um mundo pós-pós-modernismo, como conclama Maturana [5]. Que nos disfaçamos definitivamente desse mundo de vícios da globalização, de superficialidade, virtualidade e descartabilidade. Que partamos para uma nova vida, calcada em significados profundos, vínculos, fraternidade/empatia verdadeira e sem o flagelo do consumismo.
            Desviemos os trilhos de nossa viagem humana rumo a um mundo que substitua esse período inóspito que cobriu as últimas décadas. Se o “breve século XX” termina em 1991, conforme Hobsbawn, talvez possamos dizer que o século XXI venha a se iniciar tão somente após essa pandemia, inaugurando um mundo verdadeiramente novo, livre dos vícios que, ao longo desses 30 anos de estagnação nesse limbo entre séculos, esse demorado epílogo do século XX, nos puxaram para trás, adiando nosso desenvolvimento como seres humanos, de tanto que nos seguraram nas vicissitudes do hedonismo, da crença no fetiche da tecnologia, da ideia de progresso, do empobrecimento cultural, da superficialidade e do apego consumista.
Esse longo tempo perdido, que durou 30 anos – a Era da Globalização ampla (lembrando que a globalização que reconhecemos em nossos dias é apenas a última etapa alcançada de um processo que vem acontecendo desde o início de nossa história) –, durante o qual o mundo, já morto, do século XX, caracterizado pelo apego às tecnologias e ao consumismo desenfreado (um mundo em que valia ter ao invés de ser), foi sustentado por aparelhos (os aparatos tecnológicos, símbolo de sua existência) e teve sua sobrevivência exageradamente prolongada.
Deixemos o século XX morrer definitivamente. E que a pós-modernidade desapareça junto com ele. Que nasça um novo tempo, de uma nova qualidade e (indo além da proposição de Maturana) com um novo nome, sem o “pós” e, principalmente, sem a “modernidade” e todas as suas agruras. Um tempo em que voltemos a nos religar com o nosso ser, com a realidade do local em que vivemos, com a natureza interna e externa e com a simplicidade de se viver a presentidade, o momento do aqui e agora com tudo e com todos os seres vivos que compõem o meio em que habitamos.
            Mesmo sabendo que esse é mais um desejo do que uma constatação e que, no momento em que nos encontramos, nada pode ser afirmado em relação a um futuro próximo, não custa nada projetar algumas expectativas e proposições nesta que, por mais lúgubre e dolorosa que seja, é a maior janela para reais transformações que se apresenta diante de nós desde 1945.


Referências


[1] SORDI, J. Lupa na ciência: estudos refutam teoria de que novo coronavírus tenha sido criado em laboratório. Lupa. 27 de abril de 2020. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/04/27/lupa-ciencia-coronavirus-laboratorio/. Acesso em: 27 de abril de 2020.

[2] WESTIN, R. Em 1918, gripe espanhola espalhou morte e pânico e gerou a semente do SUS. El País, 15 de março de 2020. Sociedade. Disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-16/em-1918-gripe-espanhola-espalhou-morte-e-panico-e-gerou-a-semente-do-sus.html. Acesso em: 28 de abril de 2020.

[3] HOBSBAWN, E. J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[4] CAPRA, F. & LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.

[5] MATURANA ROMESÍN, H. & DÁVILA YÁÑEZ, X. Habitar humano em seis ensaios de biologia-cultural. São Paulo: Palas Athena, 2009.



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