André Jolivet: música, magia e encantamento


            Compositor de grande importância, pouco divulgado e raramente tocado no Brasil, André Jolivet foi um dos grandes criadores de música da geração que iniciou sua produção no período entre as duas grandes guerras.
            Autor de mais de 200 obras, para variadas formações instrumentais e abrangendo diversos gêneros musicais: instrumento solo, música de câmara, canção, concerto, sinfonia, cantata, oratório, música para o teatro, música para o ballet, ópera e música comercial.

Fonte: Les Amis d’André Jolivet

            Nascido em 1905, filho de pais artistas – o pai pintor amador e a mãe pianista amadora e professora de piano –, Jolivet se interessa desde cedo pelo drama, pela pintura e pela literatura, se aproximando gradualmente à música. Estuda violoncelo e teoria musical, começa a compor quando adolescente.
            Por incentivo dos pais busca uma carreira pedagógica nos primeiros anos da mocidade, atuando como professor em escolas primárias de Paris até 1940.
            Em 1927 inicia estudos de composição com o compositor Paul Le Flem. Em 1929, por intermédio de Le Flem, conhece Edgard Varèse na estréia de “Amériques” – uma das grandes obras deste compositor – em Paris. Estudará com Varèse até o retorno deste para os EUA, em 1933.
            Em 1934 tem o primeiro encontro com Olivier Messiaen.
            Serve o exército francês na II Guerra, período no qual cresce seu interesse pela religião e a magia dos povos primitivos.
            De 1943 até 1959 dirige a Comédie-Française (teatro estatal francês), época à qual alguns autores atribuem o fortalecimento de sua escrita melódica. Também será presidente dos Concerts Lamoureux (sociedade de concertos francesa fundada em 1881) de 1963 até 1968 e professor do Conservatório de Paris no período de 1965 até 1970.
            André Jolivet falece em 1974. À época ele e Messiaen eram referidos como as duas principais figuras da música francesa contemporânea.

            Seus estudos com Varèse o levam a familiarizar-se com a música de Schoenberg, Berg e Bartok, cuja influência será sentida em suas primeiras obras. É também por meio de Varèse que vem o estímulo à valorização do uso da percussão, além de instruí-lo em acústica musical e influenciá-lo no tocante às relações esotéricas entre a música e o cosmos.


Jolivet e Varèse, na Espanha, em 1933.
Fonte: Les Amis d'André Jolivet

            Em 1935, com a apresentação de Mana, para piano, chama a atenção do mundo musical com uma escrita inovadora e desafiadora, conquistando a admiração do também jovem compositor Olivier Messiaen, que, no ano anterior, já manifestara que Jolivet escrevia a música que ele, Messiaen, gostaria de escrever.
            Mana é uma suíte de seis peças tendo como inspiração objetos que Varèse lhe dera antes de partir para os EUA.

            Em 1936 funda a organização musical chamada La Jeune France (A França Jovem), junto com os compositores Olivier Messiaen, Jean-Yves Daniel-Lesur e Yves Boudrier. Seu objetivo era defender e estimular uma composição mais humana e menos abstrata. Tinham em comum um gosto pelo exótico e pela instrumentação suntuosa. Se posicionam em contraposição tanto ao academicismo quanto ao clichê revolucionário em música.
            Eis o que dizem em seu manifesto de fundação:
“Como as condições da vida se tornam cada vez mais duras, mecânicas e impessoais, a música tem o dever de trazer sem trégua aos que a amam sua violência espiritual e suas reações generosas” (Candé, p. 311).
            Além do perfil nacionalista já implícito no nome dessa organização, seu posicionamento se completa pela recusa dos ideais de Jean Cocteau e do Grupo dos Seis e pela contraposição ao neoclassicismo stravinskyano então em moda e ao dodecafonismo rígido da Segunda Escola de Viena.
           

            Primitivista, a música de Jolivet buscava recuperar o poder encantatório e mágico que a música já tivera um dia nas antigas comunidades humanas.

“Eu procurava restituir à música seu sentido original antigo, quando ela era a expressão mágica e encantatória da religiosidade dos agrupamentos humanos.” (Candé, p.310)

            Esse estímulo será fortalecido por sua primeira visita ao norte da África (Argélia e Marrocos), em 1933. Além do impacto como um todo da cultura local, lá ele ouve a flauta tradicional da região que inspirará a sua obra Cinq Incantations, para flauta solo, escrita em 1936. A flauta será um instrumento bastante enfatizado em sua produção.

Cinq Incantations, para flauta solo, 1936


Jolivet, em Blida, sentado em frente à tumba de um homem sagrado islâmico, ouvindo a um flautista local.
Fonte: Les Amis d'André Jolivet

            Essa valorização de outras culturas musicais e a busca de uma composição de caráter universal vai se prolongar por toda a sua vida. Ele viajará para diversos países apresentando e divulgando sua música e de outros compositores franceses e assimilando elementos dessas outras tradições.

Cinco Danças Ritualísticas, para orquestra, 1940-41

            Após o fim da II Guerra sua música se transforma.
“O drama da guerra lhe inspira uma espécie de ascese, de renúncia à complexidade(...). Depois da guerra, redescobre seu estilo encantatório complexo, mas ampliado à dimensão de um novo elã lírico e enriquecido pela hábil integração de elementos exóticos. Por sua extraordinária força rítmica, pelo brilho dos timbres, pela irresistível vontade criadora, que faz todas as audácias serem aceitas, as obras-primas desse período exerceram uma influência considerável sobre a receptividade do grande público à música contemporânea.” (Candé, p.310)

Chant de Linos, para flauta, violino, viola, violoncelo e harpa, 1944

            Escreve uma significativa variedade de concertos para diferentes instrumentos. Nessas obras aparece a exploração de uma escrita virtuosística e, como é recorrente em sua obra, o estilo melódico expressivo.
            Entre essas obras se destaca o Concerto para ondas martenot, uma das mais importantes obras do repertório desse instrumento, citado em nosso texto sobre esse instrumento.


            Trata-se de uma obra de grande profundidade, que explora recursos orquestrais fazendo alusões a culturas não-ocidentais. Aliás, Jolivet é um dos primeiros compositores a escrever para o ondas martenot. “Três poemas para ondas martenot” é escrita em 1935 e estreada no mesmo ano por Maurice Martenot, inventor desse instrumento. Outras obras incorporarão esse instrumento além dessas duas referidas.

            Escreve dois concertos para trompete, sendo que o segundo obtem bastante sucessso.

            Sua busca pelo caráter mágico e encantatório da música e a valorização de culturas ditas primitivas o levam a dar destaque para a flauta em seu repertório, escrevendo diversas obras em que esse instrumento tem papel de relevância, inclusive entre os concertos.

            Pela mesma via vem o interesse pela percussão, adicionado da influência recebida de Varèse.

            O concerto para piano merece estar entre as principais obras do gênero da contemporaneidade.

            Merecem destaque também o concerto para violino,

os dois para violoncelo,
(aqui o segundo concerto tocado por Rostropovich e regido pelo próprio compositor)

para harpa e orquestra de câmara,

e para fagote.


            A música vocal também terá significativa importância na produção de Jolivet.
Além das óperas e do oratório, merecem destaque as seguintes composições:

Épithalame, 1956, inspirada em sua estada no Egito junto aos egiptólogos franceses. Aproveita na obra elementos poéticos de textos do Alto Egito.

Missa Uxor tua, 1962

Madrigal, 1963


            Duas importantes obras marcam sua produção para o órgão:

Arioso Barroco, para trompete e órgão, 1968.

Mandala, órgão solo, 1969 (estréia)


            Escritas entre 1953 e 1964, suas três sinfonias se constituem em um dos momentos máximos de sua obra.

Sinfonia nº1, 1953

Sinfonia nº2, 1959

Sinfonia nº3, 1964


            A obra de André Jolivet é um magnífico exemplo de combinação de atonalidade e melodia fluida e marcante. Emprega o atonalismo e o modalismo de forma original ao mesmo tempo que enfatiza linhas melódicas claras e expressivas.
            Sua música nos apresenta essa extraordinária qualidade que, ao mesmo tempo se baseia em técnicas e materiais contemporâneos e provocadores, também consegue nos encantar, nos envolver – não somente em termos intelectuais, mas em termos de sentimentos, evocando diversos sentidos.
            Jolivet é um exemplo de compositor do século XX em que vemos uma preocupação não somente com a poiesis, mas também com a aisthesis, ou seja, não somente com os processos que envolvem a criação da obra, mas também como essa obra será percebida pelo ouvinte.
Ascèses, para clarinete, 1967

            A música de Jolivet reflete o que discutimos em um texto anterior em relação ao equilíbrio entre características inovadoras e a capacidade que os ouvintes têm de compreendê-las.

            Sua música é uma expressão de arte contemporânea que convida tanto conhecedores quanto amadores à sua apreciação, não é uma arte apenas para “iniciados”.
Suíte Delphique

            A obra de André Jolivet, embora pouco divulgada, é um dos pontos altos da música erudita ocidental. Uma escuta atenta nos permite encontrar semelhanças importantes entre sua música e a de Olivier Messiaen. Se por um lado, Messiaen teve seu justo lugar na história da música reconhecido, por outro, Jolivet ainda está por ser devidamente agraciado, ainda mais que, como vimos, se houve influência entre estes dois grandes mestres, ao que parece a música de Messiaen deve mais à de Jolivet do que o contrário.
            Jolivet nos convida a sonhar e imaginar o não-óbvio. Sua música, em suma, é uma expressão do enigmático e do mistério, elementos estes – mais do que qualquer idealismo acadêmico/científico ou revolucionário – fundamentais para a constituição de uma “grande arte”.

Jolivet e sua esposa, 1973.
Fonte: Les Amis d'André Jolivet

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Outras obras de André Jolivet

Suíte em concerto para flauta e percussão – 1965-66
Sinfonia para cordas – 1961
Sinfonia de danças – 1955
Pastorais de natal para flauta, harpa e fagote
Encantamentos para flauta solo – 1936
Arioso barroco para trompa e órgão – 1968
Heptade para trompete e percussão – 1970
Fantaisie-improptu para saxofone e piano – 1953
Concertino para trompete, orquestra de cordas e piano – 1948
Três poemas para ondas martenot e piano – 1935
Serenata para oboé e piano – 1945
Noturno para violoncelo e piano – 1943
Hopi-snake dance para pianos
La vérité de jeanne – oratório
Ballet des etoiles – 1941
Serenata para dois violões – 1956
Sonatina para flauta e clarinete – 1961
Ascèses para flauta – 1967
Suíte transoceane – 1955
Cabrioles para flauta e piano
Air de bravura para trompete e piano – 1953
Yin-yang para orquestra de cordas – 1973
Trois chansons de menestrel – 1943
Mandala para órgão
Suíte litúrgica
Sonatina para oboé e fagote – 1963
Rhapsodie à sept – 1957
Messe pour le jour de a paix
Concerto para trompete 1
Sonata para flauta e piano
Tombeau de robert de visee para violão – 1972
Petit suíte para harpa, flauta e viola
Serenata para quinteto de sopros
Controversia para oboé e harpa
Adagio para cordas
Pipeaubec para flauta e percussão
Cinco éclogas para viola solo – 1967
Serenata para oboé e piano – 1945
Fantasia-capricho para flauta e piano
Poemes pour l’enfant
Fanfares pour britannicus – 1946-61
La flèche du temps, para cordas, 1973




REFERÊNCIAS

Les Amis d’André Jolivet
http://www.jolivet.asso.fr/en/home-page/

André Jolivet
Boosey & Hawkes
https://www.boosey.com/composer/Andr%C3%A9+Jolivet

André Jolivet
Encyclopaedia Britannica
https://www.britannica.com/biography/Andre-Jolivet

André Jolivet - Biografia
http://www.arkivmusic.com/classical/Name/Andr%C3%A9-Jolivet/Composer/6002-1

História Universal da Música – vol.2
Roland de Candé
MARTINS FONTES

Dicionário Grove de Música – edição concisa
editado por Stanley Sadie
ZAHAR


PERSONAGENS

Edgar Varèse

            compositor de nascimento francês (1883-1965), mas que passou a maior parte de seu período produtivo nos EUA. Desde suas primeiras obras já aponta para novos caminhos na música, trabalhando com enfoque em novos timbres e com formas que rompem definitivamente com a tradição que outros inovadores mais aclamados em seu tempo ainda tinham dificuldade em deixar para trás. Ionisation é um marco na música ocidental como a primeira obra escrita apenas para instrumentos de percussão. É um dos precursores da música eletroacústica.

Jean Cocteau

            poeta e figura influente no meio cultural francês de seu tempo (1889-1963). Associado aos Ballets Russes desde a chegada da companhia a Paris, em 1909, colaborou com Satie e Picasso em Parade (1917) e com Stravinsky em Oedipus Rex (1927). Seu polêmico Le coq et l’arlequin (1918) forneceu uma estética para o Grupo dos Seis, de quem foi um espírito orientador: Milhaud, Poulenc, Auric e Durey, todos musicaram seus versos e Auric escreveu música para seus filmes dos anos 1930 e 1940.

Grupo dos Seis

            grupo de compositores franceses: Auric, Durey, Honegger, Milhaud, Poulenc e Tailleferre. Deram concertos juntos a partir de 1917, influenciados por Satie e pela estética anti-romântica de Cocteau, mas no início dos anos 1920 seguiram rumos próprios.

Segunda Escola de Viena

            expressão que designa o grupo de compositores que trabalhou em Viena no início do séc. XX, em torno de Schoenberg, especialmente seus alunos e aqueles que adotaram a composição dodecafônica; em particular, é usada para se referir às três personalidades principais, Schoenberg, Berg e Webern.


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