A música e a experiência da passagem do tempo

            A passagem do tempo, fenômeno abstrato, impalpável, é algo que marca a experiência de vida de todos nós. Ela nos dá, em grande parte, uma “medida” de nossas vidas, de “quem somos”.
            A vida em nossa sociedade é moldada pelo tempo do relógio, pelo calendário. Todo o universo do trabalho, das relações econômicas e tudo mais ligado a elas (ou seja, quase tudo no mundo atual) é dependente da lógica do tempo dividido em unidades iguais.
            Além da organização de toda a vida prática, do dia-a-dia, a questão do tempo em nossa sociedade nos afeta também no tocante à idade que temos, pois somos compelidos a viver de maneiras mais ou menos restritas ao estágio de vida em que estamos e nossas ações, desejos, limites e possibilidades tendem a ser moldados por esses padrões constituídos.
            No entanto, essa é apenas uma dentre as formas que experimentamos a passagem do tempo. A experiência do tempo do relógio – redutora e disciplinadora – não é a única e, provavelmente, nem a mais importante entre todas.
            Gostaria de evocar uma experiência pessoal para exemplificar a questão de como a passagem do tempo significa nossas vidas.
            Meu contato com minha irmã mais nova – agora com 18 anos (época de transição, em nossa cultura, da adolescência para a idade adulta) – sempre me faz refletir sobre o tempo. Conversando com ela percebo o quanto minha percepção do tempo se alterou com o correr dos anos e com as diferentes idades da vida. Para ela, um ano de vida é um período de tempo que equivale a projetos extensos dentro dos limites dela enquanto que para mim projetos extensos de vida já abrangem período de cinco a dez anos. Isso me remete à época em que tinha a idade dela e olhava a vida da mesma maneira: o final de ano era algo distante; as preocupações eram com o dia, com a semana, com o estágio do curso, com as impressões que eu causava nas pessoas da mesma idade, com as meninas que eu queria impressionar e com o respeito que eu adquiriria, por conta disso, entre os outros rapazes (concorrentes!), com os gols que eu poderia marcar no campeonato de futebol...enfim, a vida era concentrada naquele momento, que era “muito maior, mais concentrado” que meus anos atuais. Curiosamente, quando tinha essa mesma idade eu me interessava pela maneira que minha mãe se comportava diante do correr do tempo. Eu percebia que nossos tempos eram diferentes, mas, obviamente, eu não tinha a vivência do antes e do depois. Essa experiência dos últimos dez anos com minha irmã me permitiu construir essa rica relação para comigo mesmo: as diferenças de percepção do tempo em cada idade e ainda o privilégio de, de certa forma, reconstituir e “estar por dentro” do olhar que minha mãe tinha em relação a mim e que aguçava minha curiosidade.
            Em outras palavras, a experiência do tempo não é algo somente quantitativo, ela é significativamente qualitativa.
            A noção de tempo não é algo estático, não é fixa, igual para todas as pessoas em todos os momentos de suas existências. O exemplo que trago de minha vida evoca experiências de tempo diferentes entre pessoas diferentes, entre pessoas de idades diferentes e mesmo noções diferenciadas de tempo para a mesma pessoa em momentos diferentes de sua vida.
            Cada um “capta” o tempo à sua maneira. A duração objetiva de um evento não resulta nas mesmas experiências em duas pessoas distintas.
            O tempo cronométrico é um tempo idealizado, não tem ligação com os fenômenos da vida e, portanto, não pode remeter a nenhuma qualidade.
            Já o tempo das expectativas, das emoções, dos afetos, enfim, das experiências humanas, não cabe dentro do “cercadinho” do tempo objetivo. O “tempo humano” é fluido, móvel, variável, inconstante. O tempo do relógio, do mundo do trabalho capitalista – reducionista por natureza –, não dá conta da riqueza das experiências humanas.
            O tempo aponta para a impermanência, ele nos avisa que nada nesta vida fica onde e como está.
            Embora sejamos impelidos pela sociedade a passar a vida buscando coisas, posições, conquistas materiais, enfim, tudo que remete à permanência, à invariância, no fundo, não há como fugir do fato de que tudo isso vai passar.
            Portanto, se a lógica da vida é a impermanência, por quê insistimos em buscar o que nunca conseguiremos?
            Esta é uma pergunta pertinente para nossa sociedade atual, tão preocupada com vaidades, com hedonismos, tão “líquida”, como diria Zygmunt Bauman. Mas, este não é o tema deste blog, tampouco esta é a pergunta à qual me propus a escrever este texto.

            O que dizer, então, da experiência do tempo na música?





            Uma das definições clássicas da arte das musas é a que diz que ela é a combinação de sons no tempo. A arte do tempo, por excelência.
            A música nos permite a impressão de manipularmos o tempo, de acordo com suas distintas qualidades.
            Se desdobrando no tempo, ela remete à alma humana: impalpável, fugidia e indeterminada.
            Justamente por seu caráter temporal que a música é difícil de ser definida.
           
“Não há previsibilidade absoluta, pois no tempo só pode ocorrer invenção contínua.” (Eduardo Seincman)
“O que ocorre em uma obra não é dado de antemão; o tempo vai se urdindo, suas direções se configurando. A escuta é prenhe de lembranças, impressões imediatas e expectativas que conformam e alteram constantemente o significado do que foi, do que está sendo e do que será.” (Eduardo Seincman).





Tirania do tempo medido

            No início deste ano escrevi pela primeira vez uma obra de música eletroacústica mista, para piano e sons gravados. Foi uma experiência que, à parte ter sido bastante instigante pela proposta, original e interessante, do pianista, por outro lado, quando me defrontei com o problema de escrever a parte do piano (na verdade pianos, porque a obra é para grand piano e dois toy pianos) me senti bastante incomodado pela questão do manuseio do tempo, já que numa obra dessa natureza o intérprete precisa seguir à risca o tempo da gravação.
            Entendo a obra musical como um diálogo aberto entre seus três papéis: compositor, intérprete e ouvinte. Já vi a palavra papel substituída pela palavra ator, mas penso que são papéis porque cada um de nós toma parte em todos eles constantemente e, portanto, se há atores nesse “palco”, os atores somos nós, que os interpretamos.
            E eu, quando, no papel de compositor, sempre penso em minhas composições como obras abertas nas quais cada intérprete vai dar uma vida nova, insuflando-as cada qual com a sua personalidade, pois o intérprete a cada vez que apresenta uma obra, ele atua como co-criador. O mesmo vale para o ouvinte, pois cada ouvinte (e a cada vez que se ouve) cria para si um significado da obra musical (creio que é ingenuidade por parte de um compositor achar – e petulância querer – que  uma obra seja interpretada e ouvida sempre de maneira homogênea, se limitando ao que ele imaginou...é da natureza da nossa arte que a partitura seja apenas um ponto de partida, a cada apresentação o intérprete a recria...e mais, ouso compará-la com a vida e dizer que uma composição é como um filho que colocamos no mundo e, a partir do momento que nasce já é uma vida autônoma, independente de nossos desejos!)
            Desta maneira, foi bastante inquietante escrever sabendo que naquela obra, no tocante à questão do tempo, estaria suprimindo a riqueza da contribuição do intérprete.
            Ou seja, a natureza da obra obriga o intérprete a se algemar à tirania do tempo do relógio, privando a música e à nós ouvintes de contemplarmos o que a subjetividade daquele artista poderia acrescentar e enriquecer a idéia do compositor , acelerando ou retardando passagens (ou a música toda), fazendo rubatos, antecipações ou atrasos de notas e outros enriquecimentos que sua criatividade pudesse nos presentear. Em outras palavras, a manipulação do tempo por parte do intérprete é suprimida, restando o rigor do tempo cronológico proposto pelo compositor (apesar disso, por outros fatores essa obra acabou sendo uma das mais interessantes que já escrevi).






O tempo medido na música

            Mas, a música também, em grande parte de nossa tradição, obedece aos ditames de um tempo medido, o tempo do metrônomo. Essa característica está ligada diretamente às transformações pelas quais passaram as sociedades ocidentais.
            A música do cantochão não era uma música medida, ela era baseada na prosódia verbal, intrinsecamente ligada ao latim, sua língua de base. A música não tinha sua independência como a música instrumental de nosso tempo possui.
            O cantochão pertence a um tempo em que a organização da vida no ocidente era baseada nos ciclos da natureza. O tempo era cíclico.
            O tempo independente de eventos externos e mensurável, que chega aos nossos dias de sociedade industrial, surge a partir do crescimento da vida nas cidades, na Idade Média.
            O nascimento dessa musica mensurata coincide com um período de aprimoramento da notação musical ocidental, trazendo junto uma maior sistematização do discurso musical no tempo.
            A notação traz para a música a possibilidade de racionalizar a sua prática, garantindo um “domínio do tempo”, a estruturação da composição.
            Também é por volta dessa época que surge a figura do compositor como o conhecemos até hoje na música erudita ocidental.


“Os mesmos fatores que regem a transformação da temporalidade civil acionam também a transformação da temporalidade musical. Veremos que a musica mensurata, expressão dessa transformação, é igualmente o resultado de um processo de racionalização do tempo; que este também passa a ser computado através de uma pulsação constante que obriga à substituição de uma rítmica antes flexível e irregular, permitindo consequentemente uma sincronização precisa dos eventos musicais; que a representação analógica do tempo musical também dará lugar a uma representação abstrata e numérica; e, finalmente, que essa transformação pode ser igualmente identificada a um processo de laicização da cultura urbana, materializada no abandono das leis divinas e naturais como organizadoras do tempo.”  (Maya Suemi Lemos)



 


Música...laboratório do tempo

            A música, como arte do tempo, tem o poder de engendrar o seu próprio tempo. Mergulhar na escuta de uma obra é uma experiência que nos leva a sair do tempo do mundo e sermos conduzidos para um outro tempo, aquele proposto pelo compositor e reatualizado pelo intérprete (ou aqueles, porque há obras que nos propõem experiências múltiplas do tempo). Ouvir música é suspender o tempo e penetrar nos domínios da eternidade!

            “Não se pode associar diretamente o tempo musical a um tempo exterior e determinista, através do qual medimos eventos físicos. O tempo do relógio ou do metrônomo pode servir apenas como referência à temporalidade musical. Em música, é a organização do discurso e, portanto, sua qualidade, ao invés da quantidade ou medida, que vai criar a noção temporal. Transpassa-se assim o tempo estreito e simbólico, baseado na medida sucessiva de intervalos aos quais se associa um número, para entrar num domínio de um fluir qualitativo, sensível, em uma palavra, estético.       
          A noção de tempo musical só pode ser entendida se tomada em sua multiplicidade. Em cada cultura, em cada obra e para cada ouvinte particular o aspecto temporal da música se manifesta de modo diverso. Em música, mais que em qualquer outra atividade, a idéia de uma conceituação múltipla do tempo acaba por se impor. De qualquer modo, é sobre noções temporais que se constrói e organiza o discurso musical e, obviamente, há uma ligação estreita entre a utilização, ou mesmo a concepção temporal na música e a concepção temporal que formam a cosmologia de uma determinada época.” (Fernando Iazzetta)
           
            Embora todas as músicas fluam no tempo, a experiência do passar do tempo é diferenciada em cada tipo de música.
            A percepção da passagem do tempo dentro de uma obra musical é uma experiência fora do tempo da vida do dia-a-dia.
            Experimentar um minuto de uma música minimalista, na qual as transformações são lentas e contínuas, é algo totalmente diferente de um minuto em uma música polifônica constituída por muitas vozes ou numa música serial ou maximalista, nas quais a densidade de materiais musicais e a velocidade das transformações algumas vezes até fogem da capacidade humana de percebê-las integralmente.
            Ouvir música nos remete à percepção dos aspectos qualitativos do tempo.
            Nem todos os tempos são iguais.

Criar música é moldar o tempo!

 



REFERÊNCIAS

Do tempo musical  (inspiração e citações)
autor: Eduardo Seincman
Via Lettera/FAPESP 

Música e tempo  (inspiração e citação)
autor: Fernando Iazzetta
capítulo da dissertação de mestrado “A música atual e seus processos dinâmicos” 

Do tempo analógico ao tempo abstrato: a musica mensurata e a construção da temporalidade moderna
autora: Maya Suemi Lemos
Revista Estudos Históricos, v.1, n. 35 http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2235




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