Blade Runner 2049 e a influência de Isaac Asimov


            Neste mês de outubro de 2017 foi lançado o filme “Blade Runner 2049” que dá continuação à história do longa metragem de 1982, “Blade Runner”.
            Blade Runner é um clássico neo-noir e cyberpunk, uma adaptação bastante livre da obra “Andróides sonham com ovelhas elétricas?”, livro de ficção científica de Philip K. Dick. No enredo do filme encontramos Deckard, um caçador de androides (Blade Runner) aposentado que é convocado à ativa novamente para “aposentar” quatro androides de uma série especial (Nexus 6) que se rebelaram contra o trabalho escravo imposto pelos humanos nas colônias espaciais e aportaram na Terra, andando misturados aos seres humanos.
            Tal história, como resumida acima, poderia ser o fio condutor de muitos outros filmes que envolvessem ficção científica e ação. No entanto, Blade Runner é muito mais que isso. O filme apresenta várias sutilezas que podem passar despercebidas a análises superficiais, equívoco este bastante recorrente em relação a este filme.
            A trama do filme, habilmente construída, nos leva a uma transformação de nossa percepção a respeito dos personagens e de suas motivações. Partindo de um óbvio e simplório “estado inicial” no qual os androides (muitos afirmam que não deveriam ser chamados de androides, pois são projetados por engenharia genética) nos são apresentados como criaturas más e hostis – o total oposto aos seres humanos –, somos conduzidos a uma outra visão a respeito deles no decorrer da história – um “estado final” – que nos levanta várias perguntas a respeito do que são os seres humanos. A busca que os androides fazem pelo prolongamento de suas curtas vidas e a mudança de percepção de Deckard quanto à natureza deles caracterizam essa transformação.
              A história acontece na cidade de Los Angeles, nos EUA. O cenário é tipicamente cyberpunk, com o predomínio da alta tecnologia e de locais marginalizados e populações excluídas, além de escuros, silenciosos e misteriosos cenários noir. Num “longínquo” ano de 2019 o esgotamento dos recursos ambientais na Terra levou à exploração de outros mundos (onde se exige o trabalho dos androides). Para lá se mudaram os que tinham condições financeiras, enquanto para os mais pobres restou continuar levando a vida precariamente em centros urbanos como Los Angeles, situação essa expressivamente retratada nas cenas em Chinatown.
            Nas ruas – ladeadas por imensos prédios ornados com luzes neon e anúncios de gigantescas corporações que dominam o mundo – transitam massas de seres humanos apáticos (tristes, sem propósito de vida) que, de humanos parecem ter mantido poucas características. O papel opressor, burocrático e tirano do Estado se faz visível no aparato policial enquanto a opressão social é vista nas ruas e na segregação explícita quanto aos marginalizados que ficaram na Terra e os privilegiados que foram habitar as colônias interplanetárias. Um filme de 1982 que já apontava para as cruéis consequências do processo de globalização cujos efeitos sentimos na realidade dos dias atuais. A ficção é arte, não tem nenhum compromisso de acertar suas previsões quanto ao futuro. Ainda assim, se Ridley Scott não “adivinhou” algumas das características de nossa época que estão descritas nesse primeiro filme, em outras ele foi um visionário.
            Blade Runner deixa em aberto muitas questões. Algumas, num plano mais de superfície, tratam de indagações internas ao próprio enredo, como a dúvida sobre Deckard ser humano ou androide (questão esta debatida ao longo dos anos pelos interessados no assunto e que, em Blade Runner 2049, continuou sem uma resposta – aliás, a incerteza foi reforçada no trecho em que Deckard e Wallace conversam no magnífico cenário da nova Tyrell). Outras, mais existenciais, tratam do problema criador/criatura, na relação entre os androides e seu criador, o dr. Tyrell – um paralelo com a história de Frankenstein. Mais profundamente ainda, a busca dos androides pelo direito de sua existência e pelo direito de igualdade como seres vivos.

fonte: Warner Bros

           Blade Runner 2049, vindo à tona 35 anos (reais) depois do clássico inicial e 30 anos após os fatos ocorridos no filme de 1982 (que se passava em 2019) traz de volta todas essas perguntas, respondendo parcialmente algumas, deixando outras em aberto e lançando novas questões (para os próximos 35 anos?).
            Mantém-se o clima de mistério. O ambiente “cyberpunk” é enfatizado, porém a característica noir nos cenários está menos intensa (embora ainda exista o foco do policial, seu romance, etc), tendo bastante enfoque no clima apocalíptico, típico de obras do período da Guerra Fria e a literatura que trazia a especulação sobre a Terceira Guerra Mundial e o possível fim do mundo (por exemplo, o filme “The Day After”). Evoca-se outros filmes do universo apocalíptico e do cyberpunk, como Matrix e Dark City.
            Sons e música enfatizam esse clima apocalíptico. A trilha sonora de Hans Zimmer é competente, com bons efeitos criando uma ambientação complementar aos cenários, enfatizando as imagens. Estão presentes os sons de sintetizadores semelhantes aos que Vangelis utilizou no primeiro filme. Porém, embora comumente eu defenda que a música para o cinema seja construída à maneira que Zimmer trabalhou neste filme, ou seja, sem o apelo a canções de formato comercial que “colam” no ouvido, curiosamente senti falta de algo na trilha de Blade Runner 2049. Vangelis, embora também tenha investido nos efeitos, no aspecto sonoro como um todo, somando-se a sua “New Age futurista”, também traz para a trilha de Blade Runner algumas músicas que apresentam uma “personalidade” destacada, como pode-se ouvir nas faixas “Love Theme”, “Blade Runner Blues” e na simples, intensa e dramática “End Titles”.

(Love Theme)
(Blade Runner Blues)
           
            A responsabilidade de realizar uma continuação de um dos filmes mais emblemáticos do cinema foi tomada muito a sério. Três curtas metragens foram elaborados e lançados na rede nos meses que antecederam a estréia do longa. Esses curtas metragens, além de criarem um clima de expectativa e preparação (e, claro, funcionando inteligentemente como divulgação) para o longa, contam alguns fatos que ocorreram no período que separa as duas histórias, os anos entre 2019 e 2049. Os curtas não se tratam de adornos ao filme, são essenciais para se compreender o que ocorre em 2049.

Blade Runner Blackout 2022

Blade Runner 2036: Nexus Down

Blade Runner 2048: Nowhere to Run

            Os cenários são impressionantes. Mesmo para quem não se interessa pelo gênero ou não está disposto a mergulhar nas densas reflexões sociais e existenciais às quais o filme convida, ainda assim assistí-lo é válido pelo prazer estético que as imagens proporcionam.


            Em relação ao primeiro filme, Blade Runner 2049 é mais sombrio no que toca o desenrolar de seu enredo, com o mistério que o permeia e a música que realça as cenas e as imagens. Alguns elementos do cinema noir estão presentes, como o realce investigativo e o foco em figuras marginalizadas. No entanto, quanto a seus cenários, como já dito, essa característica está atenuada, eles são menos escuros que no filme de 1982. Os vazios e silêncios, mesmo quando sugeridos, estão quase sempre preenchidos de uma tensão que parece ser uma constante no filme (como uma nota pedal).
            Certamente isso está ligado de forma coerente com o fluxo da história apresentada nesse segundo filme, com seu cenário e história ampliados.
            Mas, isso tem consequências que vão além do sentido narrativo e imagético. Algumas cenas na cidade, pelo fato de não estarem mergulhadas no escuro do noir, comparadas em relação ao primeiro Blade Runner, tornam-se um pouco mais cotidianas, perdem um pouco do seu mistério. O cenário fica mais trivial, mais próximo do dia-a-dia. A riqueza do estilo noir se deve a ele ser pleno de vazios, de silêncios, de não-ditos...de mistério!
            Falamos a respeito dessa profícua relação entre arte, silêncio, vazios e mistério em nosso texto sobre o pintor Giorgio De Chirico.


            Eis o “vazio expressivo”...tudo que nossa sociedade atual não tem a oferecer. Mergulhada em sua verborragia estéril, o barulho e a falação desenfreada tomaram conta do comportamento das pessoas...até a arte se ressente.
            A ascensão dos EUA como potência militar, econômica e política trouxe ao mundo também o peso de sua cultura, mais focada no cidadão comum do que o perfil da cultura européia, antes dominante, que era mais exclusivista. Nas últimas décadas, sob essa influência, passamos por uma verdadeira revolução, que elevou a vida do cotidiano a um interesse nunca antes visto. Esse foco no cotidiano, esse esmiuçamento da vida em todos os seus detalhes, com seus Big Brothers e outros programas de televisão similares, com o Facebook e a digitalização dos boatos sobre a vida alheia, que antes era feita de porta em porta, mas agora em um nível de detalhe impensável antes, aberto para o mundo. Enfim, todas essas vicissitudes atuais acabaram por desencantar o mundo, tirando os seus segredos, desritualizando-o.
            No texto sobre De Chirico falávamos que o mistério é essencial para criar sentidos em uma obra de arte. Mais ainda, ele também é necessário na vida nossa de cada dia. Uma vida vivida com arte é uma vida plena de sentido. É preciso resgatar o mistério que o cenário atual destituiu. É necessário reencantar o mundo.
            Isso é algo que Blade Runner 2049 traz, em parte...perguntas sem respostas...lacunas...não-obviedade...mistério.
            E, vindo de Hollywood, o centro da indústria cultural, com todo o seu poderio de divulgação de alcance mundial, pode ser um bom sinal, haja visto seu poder de influência sobre o comportamento coletivo. E pode mesmo ser um sinal de algo que esteja em mudança no ar, que ainda não foi conscientemente captado. A arte e a cultura são canais privilegiados para se compreender o mundo e captar coisas que as outras áreas demoram para observar.
            O que falávamos sobre a diminuição dos elementos noir no último Blade Runner também ocorreu na trilogia de Christopher Nolan sobre o personagem Batman. O segundo filme, The Dark Night, é primoroso. Ali o autor alcança tanto com o enredo bem amarrado quanto com os cenários e, principalmente, aquele clima noir, um efeito de grande impacto, sendo, provavelmente, o melhor filme realizado sobre o personagem até hoje. Porém, no 3º filme, The Dark Night Rises, ele perde um pouco desse brilho, justamente por querer “colocar as coisas mais às claras” com uma Gothan City mais clara, mais à luz do dia, menos noir e, mais ainda, exagerando na referência ao cenário político da época atual, dominada pelo medo fabricado a respeito do terrorismo.
            Como já enfatizamos, os cenários de Blade Runner 2049 são um de seus pontos altos. A periferia da cidade retrata a exclusão mais contundente da população, vivendo alijada das mínimas condições de uma vida razoável, vivendo em barracos empilhados uns em cima dos outros, semelhantes aos morros e favelas que encontramos no Brasil. Crianças trabalhando em regime de escravidão e adultos marginalizados vivendo em meio ao lixo que a cidade elimina.
            A chuva é constante, evidenciando o impasse climático ao qual a humanidade prostrou o planeta.
            Os cenários pós-apocalípticos são impactantes. O visual da zona de descarrego de detritos de Los Angeles lembra o ambiente de Mad Max.  Perpassando o filme e mais intensamente em Las Vegas essa temática fica mais densa, lembrando o já citado The Day After e também referências do mundo dos vídeo-games atuais, como a série Fallout, que se passa num mundo pós-guerra nuclear, num clima constantemente tenso e hostil.
            Blade Runner 2049 é um grande exemplo de uma continuação bem sucedida. Revive um filme icônico – o qual muitos ceticamente preferiam que fosse deixado como estava, para não correr-se o risco de um fracasso –, prolonga sua história, amplia suas tensões, retrabalha seus temas, traz algumas de suas perguntas à tona, responde parcialmente algumas e lança outras questões. Certamente vem para ficar para a história do cinema. Suas questões em aberto nos convidarão a debatê-lo e adorá-lo, como ocorreu com o seu antecessor, pelas próximas décadas (embora, diante da trama enriquecida, da quantidade de elementos deixados em aberto e com um filme tão bem feito como esse, dificilmente não será realizada uma continuação).
            Sua história envolvente, suas imagens impressionantes, seus cenários provocadores, os temas controversos e atuais que traz para a discussão, a crítica social, as questões filosófico/existenciais que levanta e o enredo noir que, privilegiando o aspecto investigativo, tem a ação como um meio e não como um fim, colocando-a a serviço da história, são elementos que apontam para uma produção madura, que vai muito além do entretenimento alienante, preocupada em fazer sentir e pensar, como é próprio das grandes obras de arte. É Hollywood no melhor de sua produção!


A influência de Isaac Asimov

            O livro no qual a história de Blade Runner se baseia é “Andróides sonham com ovelhas elétricas?”, de Philip K. Dick. No entanto, ela é apenas o ponto de partida, existindo nos dois filmes várias influências, algumas das quais já apontamos anteriormente.
            O imaginário dos androides, sua busca por se assemelharem aos seres humanos, seu progressivo desenvolvimento, a busca de um líder entre eles, a fúria dos humanos passando a caçá-los, a revolução sendo tramada por eles, relações amorosas entre humanos e androides...tudo isso aponta para a obra de um autor: Isaac Asimov.
            Isaac Asimov (1920-1992), nascido na Rússia e naturalizado nos EUA, é considerado por muitos o maior de todos os autores de ficção científica. Sua farta obra de contos e romances do gênero, cujas histórias são amarradas entre si, demonstra um gradual povoamento de toda a Via-Láctea pela humanidade. Uma parte significativa de sua obra para ficção científica (ele não escreveu somente sobre este assunto, tendo totalizado mais de 500 obras) enfoca o universo dos robôs.

            Sua produção sobre esse tema foi tão rica que acabou construindo um imaginário coletivo sobre os robôs e, com isso, projetou sua influência tanto sobre a imaginação popular, quanto sobre a literatura subsequente relacionada ao assunto, o cinema e acabou mesmo extrapolando as fronteiras da fantasia e da arte. Seus contos sobre robôs e as Leis da Robótica advindas desses contos serviram de inspiração para Joseph Engelberger, considerado o “pai da robótica”, desenvolver seus robôs industriais. Asimov e Engelberger foram contemporâneos na Universidade Colúmbia, nos EUA. Posteriormente, Engelberger convidaria Asimov para escrever o prefácio de seu livro “Robótica na prática: manejo e aplicação de robôs industriais”.
            Aliás, a palavra “robótica” é uma invenção de Asimov. Conforme ele conta na introdução da coletânea “Nós, robôs”, essa palavra foi pela primeira vez utilizada em sua história “Andar às cegas”, de 1942. É nessa história que também são lançadas as suas “Três Leis da Robótica”.

  • 1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
  • 2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
  • 3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou com a Segunda Lei.

Lei Zero: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal (acrescentada mais tarde e se encontra acima de todas as outras).

           As Leis da Robótica são as diretivas implantadas nos "cérebros positrônicos" dos robôs que habitam o universo criado por Asimov. As Leis tem a função de garantir a coexistência entre humanos e robôs, já que a tecnologia desenvolvida dos cérebros positrônicos dão aos robôs uma grande inteligência e a capacidade de tomarem decisões por si próprios e, aliada à sua força e capacidades maiores que as dos seres humanos, poderiam torná-los uma ameaça para a humanidade.
           Essa preocupação quanto à possibilidade das máquinas serem independentes e, possivelmente se rebelarem contra os seres humanos aparece em "Sally", conto no qual carros com motores positrônicos já se comunicam entre si, apresentam sentimentos e tomam atitudes independentemente dos seres humanos. No entanto, a idéia de uma revolução das máquinas não é um tema central na obra de Asimov. Ele, através das Leis da Robótica, enuncia sua possibilidade, mas as coloca justamente como um limitador para sua ocorrência. Embora em seus grandes romances de robôs apareça a suspeita de possíveis desvios e falhas nos robôs, esses acontecimentos se revelam ligados à interesses humanos por trás.
           A ficção científica no cinema fez muitas alusões às obras de Asimov ao longo dos anos. Entre elas podemos lembrar de “Eu, Robô”, filme homônimo ao conto do escritor, no qual o robô protagonista encontra um sentido em sua vida assumindo um papel de liderança entre os demais robôs.
            Em “A.I. – Inteligência Artificial”, há uma forte dramatização em torno dos sentimentos desenvolvidos pelo robô protagonista David, além da caça humana aos robôs, a relação de amor e de subordinação destes aos seres humanos e do romance entre as duas espécies, tema este que aparece marcadamente no conto “Os Robôs da Aurora”. A cena do robô gigolô sendo identificado e levado embora é marcante: no momento que está sendo atraído pela nave, sabendo que será destruído posteriormente, pede para o robô David que lembre-se de que ele existiu. Uma cena de grande impacto emocional, que ecoa Blade Runner, com o androide Roy poupando a vida de Deckard, em seus momentos finais de vida e contando-lhe as coisas impressionantes que viu em seus poucos anos de existência. A cena de Inteligência Artificial também faz lembrar a passagem clássica do mito grego de Orfeu, quando sua amada Ariadne desaparece na fuga do Inferno, cuja última visão que o herói tem dela é dos braços esticados apontados para ele, num derradeiro apelo e manifestação do desejo de estar com ele.


            Outro filme no qual aparecem contatos amorosos entre humanos e um tipo de inteligência artificial é “Ela” (“Her”).
            As idéias e temas de Asimov aparecem também em Guerra nas Estrelas, Jornada nas Estrelas e O homem bicentenário, entre outros. Jornada nas Estrelas, particularmente, é perpassada por Asimov. No primeiro filme, de 1979, ele atua diretamente como colaborador e o símbolo do comando da Frota Estelar, presente nos uniformes dos oficiais, se aparenta ao do Império Galáctico (espaçonave e sol) da série Fundação, de Asimov. Na segunda geração, do sétimo longa metragem em diante, aparece o androide Data, que é dotado de um cérebro positrônico e apresenta comportamentos semelhantes aos androides do autor referido.
            Os robôs mais sofisticados do universo de Asimov (pois há também, em suas histórias, robôs mais rústicos) apresentam características voltadas ao aprendizado e à auto-superação (tema este que remonta ao mito de Odisseu, que é respeitado pelos deuses por sua capacidade de sempre buscar se aperfeiçoar, encontrar soluções que outros homens não buscavam, não contentando-se com suas limitações), mas também o desejo de serem como os seres humanos, apego e devoção a esses, respeito às leis, ética e moral incorruptíveis e uma vida baseada na lógica. Em suma, eles são o que gostaríamos de ser, são “mais humanos que os humanos”.
            A grandeza da obra de Isaac Asimov se encontra no fato de que ele faz ficção científica não para falar simplesmente de coisas futuristas, especulações sobre como será o amanhã ou contatos com outras formas de vida inteligente (que, aliás, nem é o seu foco, pois em suas maiores séries a humanidade não encontra alienígenas, ela própria se espalha e ocupa a Via-Láctea). Os contos e romances de Asimov falam sobre nós humanos, nossa condição humana, nossas dificuldades, fraquezas e conflitos.


Blade Runner e o universo de Asimov

            O cenário da Los Angeles de Blade Runner lembra as cidades subterrâneas terrestres de “As Cavernas de Aço”. Neste romance, escrito em 1953 (vale lembrar que “Andróides sonham com ovelhas elétricas?” foi criado em 1968), Asimov traz fortemente a temática dos robôs, o aspecto investigativo policial e a aversão dos humanos contra os robôs, entre outros traços. É a primeira obra em que surge o personagem Daneel Olivaw.


            No curta metragem “Blade Runner 2036: Nexus Down” fica nítida a influência das Leis da Robótica de Asimov na criação dos androides da linha “Nexus 8” quando Niander Wallace, que adquirira os direitos da Tyrell Corporation, ordena que o replicante que o acompanha escolha entre a própria vida e a dele (Wallace).
            E, perpassando os dois filmes, encontramos a discussão sobre a condição humana. No longa metragem de 1982 está posta a questão dos androides procurando ser como os seus criadores. O androide Roy, buscando meios de prolongar sua vida, preocupando-se, como um ser humano, em seu legado, salvando Deckard e contando para este sobre sua vida e seus feitos, de certa forma perpetua-se na memória daquele que o ouviu (como os pais fazem com seus filhos). E, de fato, Deckard não sai o mesmo após essa experiência, sendo profundamente transformado por ela. No segundo filme K busca um sentido para sua vida na expectativa criada de que ele seria o androide que nasceu de outra androide e, após a busca frustrada, se vê no desafio de encontrar um sentido definitivo para sua existência (quer algo mais genuinamente Humano?), tema este que evoca o enredo de “Eu, Robô”, de Isaac Asimov.
            Os dois filmes nos colocam a pergunta sobre o que nos caracteriza como seres humanos. Seria simplesmente nosso nascimento como humanos? Afinal, o que é a vida?
            Questionamentos como esses já aparecem nos contos e romances de Asimov e em obras cinematográficas inspiradas em seus trabalhos, como já comentamos antes.

            Gostaríamos de terminar dizendo que, ao nosso ver, são dois filmes que, apesar de qualquer outra coisa, celebram o sentido do viver. Tanto na tomada de decisão de K, ao final, quanto na poética morte de Roy, nos passam a mensagem de que a vida vale a pena e encontrar um sentido para ela é uma tarefa recompensadora.
            E, quanto às últimas palavras de Roy, nada mais humano que um androide pudesse manifestar, exprimindo um dos maiores enigmas que assolam a humanidade: o inexorável fluxo do tempo que arrasta nossas vidas contra o qual nada há para fazer que possa vencê-lo.
            “(...) todos esses momentos se perderão no tempo...como lágrimas na chuva”
            Uma das mais impressionantes cenas da história do cinema!




REFERÊNCIAS

Joseph Engelberger: the father of robotics
https://www.robotics.org/joseph-engelberger/about.cfm

O que é cyberpunk?
Momentum Saga
http://www.momentumsaga.com/2012/09/o-que-e-cyberpunk.html

Andróides sonham com ovelhas elétricas?
Philip K. Dick
ALEPH

Nós, robôs
Isaac Asimov
CÍRCULO DO LIVRO

As cavernas de aço
Isaac Asimov
ALEPH

Blade Runner: Entenda o filme
https://www.youtube.com/watch?v=FPzAZopchiA


PERSONAGENS

Cinema Neo-Noir

            denominação para filmes realizados após o período clássico do cinema noir (décadas de 1940 e 1950) e que contenham elementos (temas, conteúdos, estilos, características visuais, etc) atualizados em relação aos filmes daquele período. O termo também é utilizado em sentido mais lato, como qualquer drama hollywoodiano que envolva crimes.

Cinema Noir

            subgênero de filme policial, de origem estadunidense e que teve seu auge na década de 1940. Resulta de uma combinação de estilos e gêneros de cinema e das artes plásticas. Entre essas influências estão o cinema expressionista alemão, o realismo poético francês e o neorrealismo italiano. Sua influência sobre a sétima arte extrapolou a fronteira dos EUA e se estende até nossos dias. Filme em preto e branco, forte contraste entre claro e escuro, cenários noturnos, interiores sombrios, ambientes urbanos, casas noturnas, clubes de jogos, moralidade ambígua, fatalismo, dramas inteligentes e austeros, desconfiança, cinismo, paranoia, narração confessional, anti-heróis impiedosos e não sentimentais, homens solitários, inseguros, desiludidos, mulheres dóceis e amáveis ou femmes fatales (deslumbrantes, misteriosas, ambíguas e oportunistas dispostas a qualquer coisa para se darem bem), crimes, assassinatos, policiais corruptos, são alguns dos elementos presentes em boa parte dos filmes noir.

Cyberpunk

            subgênero de ficção científica que apresenta cenários distópicos, acontecendo em ambientes suburbanos, sujos e caóticos. Focam a degradação do estilo de vida e a marginalização em um mundo dominado pelo computador e o ciberespaço. A tecnologia é apresentada de maneira pessimista. Seus personagens são ambíguos, anti-heróis. A sociedade da era digital, dominada por grandes corporações, é retratada com grande niilismo.

Vangelis

            compositor grego (1943-) que alcançou grande sucesso com as trilhas sonoras dos filmes “Carruagens de fogo” e “1492: A conquista do paraíso”, além de Blade Runner. Também ficou conhecido por seus trabalhos com o vocalista Jon Anderson do grupo de rock Yes.

Nota pedal

            em música nota pedal é uma nota que é repetida ou sustentada durante algum tempo no decorrer de uma obra, muitas vezes criando uma tensão que pede resolução.


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