Debate e Concerto sobre Walter Smetak


            Neste primeiro texto vamos falar sobre o concerto intitulado Re-inventing Walter Smetak apresentado pelo Ensemble Modern.
            O concerto, parte do Festival de Inverno de Campos do Jordão deste ano, foi realizado na Sala São Paulo no dia 12 de julho e contou com dois momentos: o concerto propriamente e um debate que o precedeu.



           

            Walter Smetak é um desses revolucionários solitários que (apesar do grande barulho realizado por muitos) poucos a música do século XX verdadeiramente produziu (difícil não trazer à tona logo de cara o nome de Giacinto Scelsi, haja visto o paralelo entre ambos, trabalhando isoladamente e sem o reconhecimento devido às suas produções verdadeiramente inovadoras). [ver lista de personagens ao final do texto]
            Violoncelista, compositor, inventor e filósofo da música, Anton Walter Smetak (1913-1984) nasceu suíço, veio para o Brasil em 1937, aportando em princípio em Porto Alegre e, posteriormente, se estabelecendo na UFBA a convite de H.J. Koellreutter e Ernst Widmer, local onde desenvolveu o trabalho inovador pelo qual é (pouco) conhecido.

Smetak, som e espírito


            Esse artista ainda tão pouco divulgado no mundo da música, mesmo passados anos de sua morte e apesar da influência que exerceu sobre o Tropicalismo e em artistas como os do grupo Uakti, realizou em solo brasileiro um trabalho verdadeiramente original de música experimental, inventando novos instrumentos e, junto com eles, uma nova maneira de pensar e fazer a música que apontava (e ainda hoje aponta) para novos caminhos para a música do ocidente.

  “A obra de Walter Smetak ‘atacou de frente’ as questões mais relevantes para o criador musical no século XX: microtonalismo, não-temperamento da escala musical, invenção de novos instrumentais, improvisação, instrumentos coletivos, relação entre as linguagens artísticas.     Isso não é pouco. Ainda mais em se tratando de um ambiente musical avesso às inovações que fujam ao controle dos grupos estabelecidos na universidade e nas instituições musicais.”
                (Lívio Tragtenberg, introdução ao livro Walter Smetak: o alquimista dos sons, de Marco Scarassatti)



             Eu mesmo, poucas vezes ouvi falar de Smetak. A primeira vez que seu nome me foi apresentado estava na graduação de Composição e Regência na UNESP e, se não me engano, foi pelo Daniel Rocha, companheiro de sala. No entanto, não me lembro de nenhum professor o citando ao longo dos seis anos do curso.





Caetano e Gil falando sobre Smetak

Álbum Smetak





            O debate durou pouco mais de uma hora (deixando com a vontade de que se estendesse bem mais, devido aos instigantes temas que envolvem a produção de Smetak) e teve mais uma aparência de algo expositivo do que verdadeiramente um debate, pois, embora os participantes tenham tido espaço para apresentar seu pensamento, o tempo foi curto e a abertura para a platéia perguntar não foi tão prolongada a ponto de esgotar as perguntas. Igualmente o tempo destinado aos componentes da mesa comentarem as perguntas foi limitado.
            A mesa foi composta por Christian Fausch (diretor artístico do Ensemble Modern), Marco Scarassatti, José Miguel Wisnik com a mediação de Arthur Nestrovski. Embora não estivesse na mesa, o compositor Arthur Kampela, autor de uma das obras interpretadas no concerto, também foi convidado a falar.
            Três pontos me chamaram a atenção no debate:
1. A apresentação de Arthur Nestrovski, que fez uma feliz contextualização da vida e da obra de Walter Smetak, colocando-o como um dos vértices daquele que, segundo ele, foi, talvez, o mais importante momento da história de nosso país, os anos pós-ditadura Vargas e antes do golpe de 1964. Segundo o diretor artístico da OSESP, em meio às grandes realizações culturais (Bossa Nova, Tropicalismo) e políticas (projeto desenvolvimentista brasileiro dos anos 1950) do período, o trabalho de Smetak surge como um visível projeto de uma nova civilização que teria sido interrompido e até nossos dias ainda não retomado.
2. A fala de José Miguel Wisnik, a quem eu (mal) conhecia apenas de poucas linhas de alguns de seus livros, foi muito convincente. Parece um desses magos das palavras que, donos de uma sólida retórica, conseguem exteriorizar seu pensamento com graça, poesia e clareza. Fez mais claro, doce, poético o assunto que, nos discursos dos demais, estava denso, narrativo, expositivo demais.
3. A visível dificuldade de parte do público em reconhecer a profundidade da inovação que o trabalho de Smetak traz. Alguns comentários e perguntas da platéia explicitaram tal questão no tocante à concepção do suíço quanto ao que é uma obra, sua relação indissociável com outros aspectos da vida (influenciada, segundo ele, por sua ligação com a Eubiose, uma versão brasileira da Antroposofia) e do conhecimento e a noção de interpretação, totalmente diferente do que ainda é vigente na música erudita ocidental. Saliento isto não para fazer críticas ou segmentar pessoas entre entendedores ou não entendedores (jamais!), mas, pelo contrário, para chamar a atenção para o fato de que a obra desse grande criador não foi trazida à tona, está esquecida (falamos, em nosso cotidiano de músicos, a respeito de Schönberg, Stravinsky, Boulez, etc, mas não assimilamos as inovações de um criador que viveu entre nós!) e por isto gera incompreensão. Smetak traz um outro conceito de obra, não redutível ao simplesmente técnico/musical, seu fazer é voltado para integrar a criação/interpretação com o ambiente, aliás, sua base de criação e interpretação é a improvisação, sua harmonia é microtonal...enfim, uma outra música.

informações sobre o evento

Álbum Interregno
           
            Na segunda parte do evento, o concerto trouxe a interpretação das obras encomendadas a quatro compositores para que se apropriassem do universo de Smetak e fizessem suas criações livremente, incorporando os instrumentos e a concepção da música do compositor suíço à atmosfera da música contemporânea e seus instrumentos.

Arthur Kampela: ...Tak-Tak...Tak
            explora com autonomia e riqueza orquestral o colorido de vários instrumentos de Smetak, como a Vina, a Ronda, o Três Sóis e um instrumento coletivo, espécie de uma árvore (o qual não identifiquei o nome, mas que lembra muito instrumentos africanos que possuem objetos secundários que produzem ruídos aleatórios e se somam ).

Liza Lim: Ronda – o mundo em rotação para 9 músicos
            esta obra chama a atenção desde o início pelo uso da espacialização dos sons e pela frequente mudança de local de alguns dos músicos pela sala de concerto. No entanto, fora a interessante proximidade com a linguagem de Giacinto Scelsi no tocante ao uso de notas repetidas com construção de tensionamentos e distensionamentos por meio da microtonalidade e adensamentos e rarefações de texturas, esta obra me agradou a partir do que entendi como sendo sua segunda parte a partir da qual os músicos de metais que se movimentavam entre a platéia começaram a fazer um magnífico diálogo com o Piston Cretino (um dos instrumentos smetakianos). Além da incrível gama de sons que esse instrumento parecido com um brinquedo possui, imitando a potência e o timbre do trompete, ele se tornou, nas mãos dos intérpretes, um meio de construir uma interpretação teatralizada, lúdica, que fez da música ali ouvida mais que um espetáculo de sons, uma construção interativa unindo público e músicos.

Daniel Moreira: Instrumentarium – para ensemble e vídeo/trilha sonora
            Daniel Moreira investe numa interação visceral entre música e imagens, conseguindo um resultado multimídia muito bom, particularmente devido aos sons inauditos dos instrumentos de Walter Smetak.

Paulo Rios Filho: Volvere
            A diversidade de seções na arquitetura sonora, o aproveitamento perfeccionista dos timbres de Smetak e a intensa solicitação das qualidades de interpretação (musical, teatral, vocal) dos músicos fazem desta obra um monumento inesquecível, daquelas músicas que ouvimos e continuamos a querer ouvir mais e mais, indefinidamente. Eu e minha amiga Márcia (a quem estou em dívida já que eu assistiria apenas o debate e ela meigamente insistiu para que eu ficasse para o concerto) hesitamos muito para levantar da cadeira, mesmo minutos após o fim da música. A vontade de escutar mais era pungente! As conversas entre os músicos em meio às partes instrumentais, a teatralidade (às vezes até jocosa, por exemplo em relação aos cartazes levantados, que faziam lembrar Santos Football Music de Gilberto Mendes) e principalmente uma das últimas seções, na qual vários músicos abandonaram temporariamente seus instrumentos e materializaram ali uma verdadeira epifania de gestos e sons tocando Boréis de diferentes tamanhos, de Smetak. Episódio marcante, como uma comunhão do homem com a intensidade da vida, com a natureza, em uma festa pagã.



            Tudo isso, vale ressaltar, somente possível pelo grande trabalho do Ensemble Modern. Fora a indiscutível competência técnica para a execução do programa, o projeto em si de trabalhar (não deixar morrer) o legado de Smetak, é notória a capacidade desses músicos de não serem apenas instrumentistas no sentido tradicional e levarem a cabo um espetáculo de tamanha exigência como esse no qual eles têm que dar conta de exigências teatrais de grande expressão, recitar e cantar.

Trailer do projeto

            As quatro obras apontam para um fazer musical dialogante, mais do que “simplesmente música”, algo de arte total, a música jorrando e sendo inundada por vários aspectos do viver. Os compositores, mais do que se focar simplesmente no aspecto material, nos instrumentos (já que, nas poucas vezes que Smetak é lembrado, comumente é trazido de maneira redutora, com um perfil caricatural, como um músico maluco, inventor de instrumentos estranhos), incorporaram em suas obras a concepção ampla de música desse grande visionário.
            Enfim, um grande evento, com um bom debate e um concerto memorável!


REFERÊNCIAS

Walter Smetak: O alquimista dos sons; autor: Marco Scarassatti; ed. Perspectiva e Edições SESCSP

Música de Invenção: autor: Augusto de Campos; ed. Perspectiva


PERSONAGENS

Giacinto Scelsi
            compositor italiano (1905-1988), um dos grandes inovadores da música do ocidente. Tardiamente reconhecido, suas obras dos anos de 1950 já apontavam caminhos inauditos para nossa música. Conhecido por trabalhar com poucas notas (às vezes uma só, como em Quattri Pezzi – su una sola nota) e construir uma harmonia microtonal em torno delas, subvertendo todos os parâmetros da música tradicional baseada em melodia, harmonia cordal, contraponto, frases, ritmos, texturas simples, etc..., trazendo características típicas de músicas orientais para dentro da música ocidental.

Daniel Rocha
            violonista, tocador de banjo tenor, compositor (dono de uma bela criatividade, fora dos padrões acadêmicos, característica que apreciava muito nele). Não sei por onde anda atualmente.

José Miguel Wisnik
            professor de literatura brasileira na USP, músico, compositor e ensaísta.

Márcia Sabino de Freitas
            advogada, doutora em Bioética, na área de Saúde Pública, amante de música e outras artes, nos últimos dois anos eu, ela e outros amigos temos gastado (ganhado!) bastantes horas assistindo concertos, discutindo música, artes e política em bares e salas de concertos.

Ensemble Modern
            grupo musical alemão especializado em música contemporânea, constituído por intérpretes de vários países do mundo. Seus concertos abrangem teatro musical, projetos de dança, de vídeo, música de câmara, concertos de conjuntos musicais e orquestras. Sua forma de trabalho e organização também é diferenciada: não possuem diretor artístico, os projetos e questões financeiras são decididos e realizados em conjunto.




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