Ondas martenot: um instrumento eletrônico na orquestra




            O trabalho “On the sensations of tone” de Helmholtz e posteriormente as idéias de Ferruccio Busoni e do futurista Luigi Russolo deram base e instigaram a busca pelo desenvolvimento de novos instrumentos musicais que ultrapassassem as restrições acústicas dos instrumentos tradicionais.
            O manifesto “A arte dos ruídos”, escrito em 1913 por Russolo e os concertos apresentados com seus “intonarumori” (entoadores de ruídos ou máquinas de fazer ruídos) o tornaram uma referência internacional e reverenciado como o precursor da música eletrônica contemporânea.

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Intonarumori apresentados por Russolo e seu assistente

            Embora já houvesse experiências anteriores de invenção de instrumentos eletrônicos (como o Telharmonium, criado por Thadeus Cahill em 1897), é a partir de Russolo que essa prática vai se generalizar, inspirando a busca por novos meios de produção de sons e levantando uma questão mais profunda e importante para a música contemporânea, que é a procura por ampliar o leque de sons disponíveis para a criação musical no ocidente, por séculos limitada a apenas alguns sons dos instrumentos tradicionais temperados. Essa busca se materializa na incorporação do ruído ao fazer musical.


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Telharmonium

            Entre os vários instrumentos eletrônicos criados nesse período dois merecem particular destaque: o Theremin e o Ondas Martenot.

Theremin

            O Theremin (ou Thereminvox) foi inventado pelo russo Lev Sergeivitch Termen, em 1922. O instrumento é tocado com as mãos, sem contato físico. A distância das mãos em relação às antenas determina a frequência e a amplitude do som, geradas a partir de osciladores de rádio.
            Lev Termen (ou Leon Theremin) se mudou para os Estados Unidos ainda na década de 1920 e patenteou o instrumento naquele país em 1928. Posteriormente o instrumento chegou a ser construído em escala comercial e ganhou significativa popularidade, sendo usado em trilhas sonoras de filmes e até na música comercial. No entanto, seu uso sempre esteve ligado à exploração de efeitos, não chegando a ganhar um espaço como “instrumento sério”, ficando suas potencialidades microtonais e de qualidade sonora única sem receberem o merecido aproveitamento.

Repertório

O instrumento sendo tocado por seu próprio inventor:

Na trilha sonora de Miklós Rózsa para o filme “Spellbound” (“Quando fala o coração”), de Alfred Hitchcock.

Bernard Hermann também o utiliza na trilha sonora de “O dia em que a Terra parou”:

E aqui em uma obra do compositor tcheco Bohuslav Martinu:


Ondas martenot

            O instrumento ondas martenot foi inventado no ano de 1928 por Maurice Martenot. Seu funcionamento se baseia no controle das frequências de um oscilador de voltagem variável. O sinal é amplificado e irradiado como som por meio de um alto-falante.

Musée de la musique de Paris ("J.P.Chorier, Introduction a la musique classique")

            Embora com um princípio de construção parecido com o do Theremin, o ondas martenot obteve um sucesso muito maior que aquele, favorecido por sua semelhança com os instrumentos tradicionais de teclados e maior facilidade de execução.


            Pode ser tocado usando o teclado ou o anel deslizante preso a um cordão metálico, o qual permite os mesmos recursos do theremin. Uma mão produz as frequências (notas) enquanto a outra controla a amplitude, a articulação e o timbre. O ondas martenot, assim como o theremin, é um instrumento monofônico (executa apenas uma nota por vez).

Jean Laurendeau demonstrando as possibilidades do instrumento

            O ondas martenot chegou a ser incorporado à orquestra na França e um grande número de compositores de repertório erudito o incluíram em suas composições (cerca de 1500 obras, segundo o ondista Thomas Bloch).

Repertório

Edgar Varèse, um dos grandes inovadores da música do século XX, emprega o instrumento em sua obra Ecuatorial.

Darius Milhaud o utiliza em uma formação mais intimista, ao lado do piano.

Arthur Honegger coloca o instrumento em seu oratório “Jeanne d’arc au bûcher”.

Giacinto Scelsi o emprega em uma de suas obras máximas, "Uaxuctum".

Maurice Jarre usa o ondes martenot na faixa “Night and stars” para a trilha sonora de “Lawrence da Arábia”.

O ondes martenot aparece com destaque na obra de André Jolivet, um dos principais compositores europeus do período entreguerras, chegando a escrever para o instrumento um importante concerto.

Porém, é na obra de Olivier Messiaen que o instrumento vai alcançar seu esplendor.

Provavelmente a obra mais imponente em que o ondas martenot figura seja a Sinfonia Turangalîla, de Messiaen. Turangalîla é um monumento da arte ocidental, escrita para um grande elenco orquestral, com numeroso grupo percussivo, e tendo o piano e o ondas martenot como solistas. Essa composição faz parte do chamado “Tríptico de Tristão”, ao lado de “Harawi” e “Cinq Rechants”, obras que aludem ao tema de amor e morte que permeia o mito de Tristão e Isolda. Constituída de dez movimentos a Sinfonia Turangalîla traz alguns dos principais elementos pelos quais a obra desse compositor ficou conhecida: influência hindu e de outras culturas, canto de pássaros, rítmica não-tradicional, sonoridades debussinianas, misticismo católico e uma harmonia modal original.



            Entre os ondistas (nome dado aos instrumentistas que tocam ondas martenot) podemos destacar, entre outros, o próprio Maurice Martenot, sua irmã Ginette Martenot, Jeanne Loriod, Jean Laurendeau e Thomas Bloch.

            Jeanne Loriod (1928-2001) era cunhada de Olivier Messiaen e interpretou todas as obras desse compositor para o instrumento (no entanto, a grande obra de Messiaen para o instrumento, a Sinfonia Turangalîla, foi escrita para Ginette Martenot).  Loriod tinha em seu repertório centenas de obras para o instrumento, incluindo participação em inúmeras trilhas sonoras para o cinema. Também escreveu um tratado para o ondas martenot.

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            Se por um lado os instrumentos de Russolo (“intonarumori”) não sobreviveram a ele, não tendo sido incorporados ao métier dos compositores ocidentais – a despeito de sua influência sobre a música que o sucedeu – e o Theremin que, apesar de uma grande curiosidade despertada a seu respeito, não foi amplamente aproveitado no sentido de se explorar suas qualidades sonoras de maneira mais exaustiva, o ondas martenot, por sua vez, sobreviveu ao advento da música concreta, da música eletrônica e mesmo da eletroacústica. Foi empregado em obras de notável profundidade nas quais constata-se uma exploração significativa de seus recursos artísticos. O instrumento foi fabricado até o ano de 1988, mas nos últimos anos instrumentos semelhantes, inspirados nele, têm sido criados. O sólido repertório saído da paleta de importantes compositores do século XX permanece e importantes intérpretes do instrumento continuam a executá-lo, mantendo a prática do instrumento viva.


REFERÊNCIAS

120 years of electronic music
http://120years.net/the-ondes-martenotmaurice-martenotfrance1928/

Thomas Bloch
https://www.thomasbloch.net/en_ondes-martenot.html

Futurismo – Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo358/futurismo

Luigi Russolo e a arte dos ruídos: uma introdução à música futurista
Revista Zunái
autor: Sérgio Medeiros
http://www.revistazunai.com/ensaios/sergio_medeiros_luigi_russolo.htm

Dicionário Grove de Música – edição concisa
editado por Stanley Sadie
ZAHAR


PERSONAGENS

Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz

            matemático, médico e físico alemão (1821-1894). Prestou grande contribuição para a compreensão dos aspectos acústicos da música, sendo a referência para a atual teoria da audição. Escreveu uma obra capital para o campo da acústica, “On the sensations of tone”. Analisou e explicou o significado dos sons parciais, explicou os sons resultantes e descobriu os sons somatórios e diferenciais. Também trabalhou com fases, padrões de ondas sonoras e seu papel na consonância e na dissonância, além de sistemas de temperamento. Além disso, Helmholtz criou um tipo de ressonador para suas experiências, fabricou harmônios e melhorou os instrumentos acústicos já existentes.

Ferruccio Busoni

            compositor e pianista ítalo-germânico (1866-1924). Sua obra cambia entre as propostas mais atuais de sua época e um gosto clássico tradicionalista. Sua obra teórica “Esboço de uma nova estética da música”, de 1907, enaltece uma música do futuro com o emprego de microtons e meios eletrônicos.

Luigi Russolo

            compositor italiano (1885-1947) que, sem ter recebido uma formação tradicional em música, se envolveu com o movimento futurista inicialmente como pintor. Seus primeiros “intonarumori” datam dos anos de 1913 e 1914. Nos anos de 1920 fabricou mais desses instrumentos. Todos esses instrumentos foram destruídos durante a II Guerra Mundial. Sua atividade é considerada como precursora da música concreta francesa do final dos anos de 1940.

Lev Sergeivitch Termen

            engenheiro, físico e inventor russo (1896-1993). Após breve passagem por alguns países da Europa, chegou aos Estados Unidos em 1927. Lá ficou conhecido como Leon Theremin e, após patentear o theremin, montou um laboratório no qual trabalhou na invenção de outros instrumentos. Em 1938 voltou para a União Soviética. Nos anos que se seguiram, entre diversos trabalhos, inventou um sistema que se tornou o precursor do moderno microfone a laser, o qual foi utilizado pela polícia secreta daquele país para espionar as embaixadas de USA, Inglaterra e França em Moscou. Posteriormente trabalhou alguns anos na KGB, lecionou e construiu theremins e outros instrumentos eletrônicos no Conservatório de Moscou e foi professor de física e acústica na Universidade Estadual de Moscou.

Maurice Martenot

            violoncelista, educador e inventor francês (1898-1980) que, trabalhando como radiotelegrafista durante a I Guerra Mundial, se inspirou nos efeitos sonoros das emissões telegráficas e, posteriormente, criou o instrumento ondas martenot. Martenot também criou um método de educação musical, o Método Martenot, que foca no desenvolvimento rítmico e valoriza o espírito de iniciativa e a educação dos reflexos na criança. Lecionando no Conservatório de Paris formou a primeira geração de ondistas nos anos de 1940. Chegou a apresentar-se com orquestra executando o instrumento de sua criação.

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