Inovação e tradição na Música Erudita Ocidental dos séculos XX e XXI
O debate que assisti
sobre a obra de Walter Smetak (projeto Re-inventing
Walter Smetak, tema do primeiro texto) e suas concepções de uma nova música
(microtonalismo, novos instrumentos para uma nova música, questionamento do
conceito tradicional de obra, improvisação) levantou várias questões
importantes. Uma delas, tendo o intérprete como foco, tratei no texto anterior
ao comentar do trabalho dos músicos do Ensemble Modern.
A Música Erudita Ocidental do século XX foi marcada pelas
tentativas de ruptura. Diversos movimentos eclodiram trazendo novas propostas
para a renovação dessa música (como não poderia ser diferente, pois se nesse
período passamos por diversas transformações sociais, políticas, econômicas,
científicas, tecnológicas,... assim também haveria de ser com a música!).
Porém, em grande parte desses movimentos conclamados como revolucionários
(revolução...palavra gasta, de tanto ser evocada banalmente, tornou-se pouco
expressiva em nossos dias, a qual penso muito antes de usar), as transformações
que empreenderam não chegaram a ser tão radicais como muitas vezes se diz.
Poucos deles procuraram transformar a base do sistema
musical do ocidente, o qual continuou, na maioria das produções, sendo o mesmo
das 12 notas temperadas que desde o Barroco alicerça nossa música. Podemos
dizer que só algumas poucas figuras como Alois
Haba, Julián Carrillo, Ivan
Wyschnegradsky, Giacinto Scelsi, Walter
Smetak e a música eletroacústica
caminharam para algo radicalmente transformador neste sentido. [ver
lista de personagens ao final do texto]
No entanto, a pergunta central que desejo colocar neste
texto é a seguinte: era possível ser diferente?
As pessoas estariam prontas para uma música que
procurasse transformar todos os seus aspectos?
Afinal, muito se fala sobre a dificuldade que o ser
humano tem de encarar a novidade, ainda mais em face de uma transformação
radical (“transformar tudo a ponto de esquecer quem eu era?”). Será que é justo
cobrar que o público não “entende” a música contemporânea?
Ainda que corra o risco de ser criticado por antropólogos
e psicólogos sociais, vou evocar aqui o velho termo “identidade” para tentar
pensar essa questão. A noção de identidade como a “permanência dentro da
impermanência” – ou seja, características que se mantêm intactas apesar da
transformação sofrida por outras – se a aplicamos às nossas vidas nos faz
perceber que, mesmo que soframos ao longo do processo de vida transformações
significativas de ordem biológica, de aparência, de costumes, de percepções, de
pensamentos, ainda assim mantemos um conjunto de características que nos
permite dizer que continuamos a ser as mesmas pessoas (como não pensar em uma
enfermidade tão grave quanto o Mal de Alzheimer através do qual a pessoa perde
a consciência, a identidade, de quem ela é?). De forma alguma quero remeter meu
comentário à idéia de que a identidade é um atributo fixo (por mais que ela
remeta à noção de pertencimento), inalterável da personalidade, pelo contrário,
lembro-me aqui da eminente psicóloga Marie-Louise von Franz que, em seu livro
“O caminho dos sonhos”, disse que temos dentro de nós um conjunto/família de
almas que, a depender do momento e da situação, uma ou outra se “constela” e
assume “a ponta” de nossa personalidade. Cada um de nós é muitas pessoas, mas,
ainda assim, permanecemos únicos.
O que isso tem a ver com a nossa música?
Talvez não seja possível (viável?) transformar a música das
sociedades ocidentais tão radicalmente a ponto de se promover a substituição de
TODOS os parâmetros dessa música de maneira brusca. Possivelmente seja
necessário nos atentar mais para essa noção de “permanência dentro da
impermanência”, tornar mais relevante o fato de que a música também é um
produto cultural e que mudanças culturais radicais e em pequenos intervalos de
tempo assustam e afastam as pessoas.
A música (e todas as artes)
culta do século XX até nossos dias se afastou da realidade da maior parte das
pessoas, sobrevivendo em nichos que a cultuam e reproduzem em pequena escala, tendo
como extremo oposto a música comercial, por sua vez produzida e tratada como
mercadoria e amplamente difundida pelos mass media.
Sei que para minha afirmação existem (já há muito tempo)
contra-argumentações que dizem que não devemos fazer concessões em nosso criar
artístico ou que já são passados mais de cem anos desde os pioneiros da música
do século XX, tempo suficiente para o ouvido ocidental se acostumar com a
“nova” música ou mesmo que não é possível se admitir uma “música velha” para
sociedades que se transformaram radicalmente, principalmente nas últimas
décadas (como não lembrar de Luigi
Russolo conclamando uma nova arte para um novo mundo?).
Respondo à primeira posição que, mesmo que não deva se
reduzir a tal, a música também é uma forma de comunicação e que, se pretendemos
realizar um diálogo com os ouvintes, é salutar que não mantenhamos posições
estéreis e radicais como essas. Para a segunda contra-argumentação penso que,
apesar de tanto tempo passado, não se investiu muito na aproximação com esse
público, de maneira a efetivamente convidá-lo a apreender essas novas
sonoridades. E mais, tomando a colocação de Zygmunt Bauman em “O mal-estar da pós-modernidade”, diria
que as vanguardas, com seu perfil militante, bélico (como a origem do nome já
evidencia, vanguarda = destacamento avançado de um exército), empregaram seus
esforços no sentido de afastar essa música do público e não de realizar uma
aproximação. Quanto à terceira colocação, diria que a música que corresponde ao
nosso momento talvez esteja muito mais ligada à música comercial que à erudita
(salvo, com muitos “poréns”, a música eletroacústica).
Provavelmente tais mudanças radicais somente seriam bem
sucedidas se fossem acompanhadas da irrupção de um novo perfil
civilizatório para toda a sociedade ocidental, que trouxesse uma nova concepção
de viver, em todos os seus aspectos.
Tal transformação (metamorfose!) não parece estar visível
em nossos horizontes...pelo contrário, se olharmos pelo ponto de vista político
mundial neste momento, tudo parece tender até mesmo a voltar para trás, ao
invés de caminhar para o novo.
Eu, particularmente, acredito no que as “antigas vozes da
sabedoria” sempre apontaram: o bom caminho está no meio, na decisão
equilibrada. Embora não tenha conseguido nenhum prêmio até hoje com minhas
composições (me pergunto se não seria justamente por este fato – ou seja, de os
julgadores de concursos terem posicionamentos radicais quanto ao que esperam de
uma obra contemporânea – que minhas obras não tenham sido bem avaliadas), esse
é o caminho que sigo e, felizmente, minhas obras receberam elogios (espero que
tenham sido sinceros!) de boa parte daqueles que as interpretaram e do público,
o que para mim já é imensamente recompensador. Em boa parte de minhas obras
sigo esse “caminho do meio”, procurando trazer elementos mais inauditos
mesclados a elementos já cristalizados nos ouvidos das pessoas, de forma a
criar interesse e abrir caminho para que os ouvintes aceitem ouvir aquilo ao
qual o ouvido deles não está acostumado. É uma maneira de convidá-los (e,
também, de certa forma, educá-los para, e, consequentemente, propiciar uma
maior divulgação da música contemporânea!) a entrar no ambiente da música
contemporânea. E mais, acredito que é uma escolha sensata, pois a capacidade de
concentração e assimilação das pessoas (salvo apreciadores experimentados e/ou
especialistas da área, como nós, compositores) não é tão grande quanto
gostaríamos e muitas vezes exigimos.
Apresentar uma obra extensa com uma alta carga de
informação concentrada pode ser (e quase sempre é) algo humanamente impossível
de ser “degustado” pela maior parte dos ouvintes. A não ser que...nossa
intenção seja realmente a de afastar o público dessas obras e manter uma
posição fácil de distanciamento e elitização, reclamando que o grande público é
ignorante e “hostil” à música contemporânea. Ora, se convidamos uma pessoa para
vir à nossa casa e não somos hospitaleiros, dificilmente essa pessoa retornará.
Ou, pior ainda, quando não convidamos e ainda reclamamos que ninguém nos
visita!
Trago aqui o grande crítico e historiador da arte Gillo Dorfles, que, em sua obra “Elogio da Desarmonia”, aponta para o
mesmo caminho, endossando esse ponto de vista com o pensamento de David Hume:
“(...) a dialéctica entre novidade e facilidade é fundamental para qualquer avaliação justa do ‘consumo’ de um texto. Demasiada novidade leva à incompreensão; demasiada facilidade não suscita já atenção; moderada novidade cria interesse, como também moderada facilidade permite uma fruição consciente. As graduações infinitas entre os dois princípios, com a sua interacção, estarão portanto na base de todo o complexo edifício da compreensão e da difusão de um texto, e em geral de uma obra de arte.”
Dar maior visibilidade à música contemporânea é uma responsabilidade nossa, como músicos, intérpretes e educadores. Não é culpa do público se ele não “entende” nossa música. A culpa é nossa. Se fazemos uma música complexa (muitas vezes complicada) e o público não ouve ou vai embora da sala de concerto, é um problema a se resolver e não motivo de orgulho por fazer uma arte que faz os “ignorantes sentirem repulsa e irem embora” como é comum ver a atitude esnobe de músicos reclamando que o público não entende e não quer entender.
Nossa responsabilidade é ainda maior num contexto como o
brasileiro no qual, se o acesso à educação básica (falo de educação efetiva,
não o panorama atual no qual na educação pública – mas não somente – nossas
crianças e adolescentes vão para a escola durante anos apenas para cumprirem
horário e obterem um diploma sem conteúdo) é objeto de luxo, o que dizer do
alcance dessas pessoas à coisas mais sutis como essa arte requintada?
E, para que não fique um mal entendido, não estou aqui
defendendo que façamos “música fácil”, que nivelemos por baixo nossa produção. Pelo
contrário, estou conclamando a que tragamos as pessoas “para cima”. Acho
plenamente realizável compor obras especulativas e que ainda assim consigamos CONVIDAR as pessoas a ouvirem-nas sem que
tenhamos que reduzir o valor estético das mesmas. Depende de nossas intenções
na realização da composição e também desse trabalho de divulgação e de educação
do público para essa música. Ou seja, uma mudança de atitude em relação a essa
música de forma que superemos os estigmas vanguardísticos impregnados nela
principalmente pela geração pós-1945.
Em outras palavras: a música é um meio para aproximar ou
para afastar as pessoas?
REFERÊNCIAS
O mal-estar da pós-modernidade; autor: Zygmunt Baumann; ed. Jorge
Zahar
Elogio da Desarmonia; autor: Gillo Dorfles; ed. Martins Fontes Ltda.
Elogio da Desarmonia; autor: Gillo Dorfles; ed. Martins Fontes Ltda.
PERSONAGENS
Alois Haba
compositor tcheco (1893-1973),
pesquisou intensamente sobre a produção de música microtonal na linguagem
ocidental, trabalhando com escalas sobre quartos, quintos, sextos e doze avos
de tons. Idealizou a construção e utilizou, em suas composições e
apresentações, instrumentos de quartos de tom.
Julián Carrillo
compositor e teórico mexicano
(1875-1965) que já em 1895 começou a pesquisar sobre a microtonalidade. Denominou
o seu sistema microtonal de “Sonido 13”. Escreveu métodos e tratados sobre
música microtonal e construiu uma família de pianos, harpas e outros
instrumentos capazes de fazer soar quartos, quintos, sextos, sétimos, até
dezesseis avos de tom.
Ivan Wyschnegradsky
compositor russo (1893-1979) que
emigrou para a França, um dos pioneiros da música microtonal no ocidente. Discípulo
de Scriabin, também criou projetos de iluminação colorida para acompanhar os
concertos de suas obras.
Giacinto Scelsi
compositor italiano (1905-1988), um
dos grandes inovadores da música do ocidente. Tardiamente reconhecido, suas
obras dos anos de 1950 já apontavam caminhos inauditos para nossa música.
Conhecido por trabalhar com poucas notas (às vezes uma só, como em Quattri Pezzi – su una sola nota) e
construir uma harmonia microtonal em torno delas, subvertendo todos os
parâmetros da música tradicional baseada em melodia, harmonia cordal, contraponto,
frases, ritmos, texturas simples, etc..., trazendo características típicas de
músicas orientais para dentro da música ocidental.
Walter Smetak
compositor, construtor de
instrumentos, filósofo musical, violoncelista e professor. Nasceu na Suíça e
veio para o Brasil, onde desenvolveu importante trabalho de idealização de
novos instrumentos e concepção de uma música inovadora, baseada na
microtonalidade.
Música Eletroacústica
vertente musical originada da fusão
entre a Música Concreta francesa e a Música Eletrônica alemã durante os anos de
1950, é baseada na criação a partir de sons gravados e posteriormente
transformados – atualmente por meio dos computadores e com o apoio das
tecnologias digitais – e/ou por sons sintetizados. Tem o alto falante como item
essencial, podendo, como é o caso da “música acusmática” (uma das vertentes
desse tipo de música) ser executada sem a participação de nenhum intérprete no
palco, como na tradição da música “acústica” (não-eletroacústica, realizada com
os instrumentos tradicionais). O compositor desse tipo de música consegue
trabalhar com sons totalmente inauditos em relação à prática tradicional, já
que o trabalho em estúdio (utilização de softwares de transformação para
captação, síntese, transformação e edição de sons) permite que ele se
transforme num “moldador”/”escultor” de sons.
Zygmunt Baumann
sociólogo polonês (1925-2017), um
dos principais pensadores da atualidade, criador do conceito da “Modernidade
Líquida” como correspondente ao estado atual gerado pelas transformações políticas
e econômicas trazidas pelo capitalismo globalizado. Notável por sua capacidade
de realizar uma crítica pungente e bem construída utilizando-se de uma
linguagem simples e acessível.
Luigi Russolo
compositor e pintor italiano
(1885-1947), adepto do movimento futurista, entusiasta das transformações
tecnológicas que se processavam em seu tempo, propunha uma música que quebrasse
os elos com o passado e que refletisse o ruído das máquinas que já povoavam a
paisagem sonora da época.
Gillo Dorfles
historiador e crítico de arte,
filósofo e pintor italiano (1910-), autor de importantes livros de crítica de
arte. Formulou o conceito de “intervalo perdido”, se referindo ao impasse
criado pelas vicissitudes da vida contemporânea que prejudicaram a capacidade
de apreensão das obras de arte.
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