A contenda entre punk rock e rock progressivo na virada para a década de 1980
No início
dos anos 1980 há uma notória mudança no cenário da música de rock.
Transformações tanto no material musical, quanto na temática extramusical
adotada por esses artistas e também no nível comportamental marcam uma
significativa diferença em relação ao que vinha sendo ouvido ao longo dos anos
1970.
De fato
essas mudanças já estavam efetivadas no decorrer da década de 1970 e foram
levadas a cabo pelo punk rock.
A cultura
punk é uma consequência direta do movimento da contra-cultura que nascera das
revoltas de maio de 1968. Surgido de uma reação ao rock progressivo e ao
movimento hippie, o punk instalou um cenário de tensão na música de rock ao
longo dos anos 1970 encetando uma enérgica disputa com o seu antagonista.
O que de
marcante ocorre nessa virada de tempos e que enfatizamos neste texto é que o
rock progressivo, ao menos para o mundo “mainstream” (ou seja, no âmbito
comercial) se desvanecera. O punk ganhara a disputa no campo da indústria
musical e sua vitória no início dos anos 1980 era de tal forma consolidada que
os grupos de rock que fizeram sucesso na década anterior como progressivos
tinham saído de cena ou, os poucos que se mantiveram, haviam transformado
(simplificado!) significativamente seu estilo musical, se voltando para uma
música mais fácil e de maior apelo comercial, o que evidencia que a filosofia
ou ideologia por trás do movimento punk havia ganhado um espaço importante na
sociedade.
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À esquerda: detalhe da capa do Álbum "Relayer" (1974), do Yes - à direita: capa do DVD "Live at the Longhorn", do Sex Pistols |
O rock and
roll foi lançado ao mundo no decorrer da década de 1950. Nada mais era que o
Rhythm and Blues, mais uma música de raiz negra da cultura estadunidense que
fora levada à esfera urbana daquele país e, descoberta pela ainda não tão
lucrativa indústria da música, acabou se tornando um dos mais importantes produtos
de exportação (assim como o cinema, o hambúrguer e o jeans, entre outros) com
que aquele país, com seu imperialismo em ascensão após o fim da Segunda Grande
Guerra Mundial, se impôs ao resto do mundo capitalista.
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Cena do filme "Prisioneiro do rock", de 1957. |
Como nos
mostra Eric Hobsbawn em “História Social do Jazz”, o rock nasce como uma música
direcionada ao público adolescente/jovem, faixa etária esta que a indústria
estava descobrindo como nova promessa de ampliação de mercado.
O rock
alcançaria grande sucesso comercial muito rapidamente e se multiplicaria com o
decorrer dos anos em estilos diferentes. Um desses estilos, o rock progressivo,
desenvolveu-se na Inglaterra – a qual tinha se tornado uma segunda pátria dessa
música – em finais da década de 1960. Era caracterizado por uma busca de
enriquecimento da música do rock trazendo influências da música erudita
ocidental, do jazz e de músicas de outras culturas. As músicas traziam
temáticas e textos mais elaborados (algumas vezes incluindo adaptações de clássicos
da literatura), ampliação e diversificação dos instrumentos utilizados e
aumento da duração das músicas, extrapolando em muito o formato comercial ordinário
(2 a 3 minutos, aproximadamente), chegando a ter músicas que ocupavam um LP
inteiro. Tudo isto trazia para esta música uma significativa complexificação,
exigindo músicos com maior formação musical e cultural do que comumente era solicitado
pela música de rock de até então.
O rock
progressivo nasce em fins da década de 1960, praticamente junto com a revolução
de maio de 1968, sucedendo o rock psicodélico e a música hippie, refletindo
aspectos da cultura dessa época, como o próprio movimento hippie, valorização
da natureza, crítica à sociedade ocidental, pacifismo, busca por liberdade,
liberação da mente pelo uso de drogas alucinógenas, misticismo, orientalismo,
entre outras características.
Yes, ELP, Pink Floyd, Rush,
Genesis, A.R.E.A., Supertramp, Jethro Tull, King Crimson e Gentle Giant são
alguns dos mais importantes representantes deste gênero nesse período.
No Brasil o
rock progressivo se fez presente com grupos como Os mutantes, O Terço e Terreno
Baldio, entre outros. Além disso, e talvez com maior importância, foi a
influência exercida sobre o Tropicalismo, movimento que teve como representantes
Caetano Veloso e Os mutantes, entre outros, e que foi um marco na cultura
brasileira do século XX.
“Faça você mesmo”: o
punk rock
O punk
nasce no início do que Hobsbawn, na obra “Era dos Extremos - O breve século
XX”, chama de as “décadas de crise”, período que se inicia em 1973 e segue até
nossos dias, marcado por recorrentes crises do capitalismo.
Eminentemente
juvenil, o punk aparece como uma manifestação da contracultura que abrange
campos diversos como a moda, o comportamento e, particularmente, a música.
Ecoa, de certa forma, o caráter também juvenil do rock and roll original da
década de 1950. Sua música é visceral, rústica e agressiva. O visual desses
jovens era marcado por cabelos cortados como moicano e pintados com cores
chamativas enquanto usavam calças rasgadas, camisetas básicas e jaquetas de
couro com alfinetes e outros itens incomuns e provocativos.
O punk
surge nos EUA, tendo os Ramones como grupo de destaque inicialmente. Porém, o
sucesso desta música seria alcançado principalmente na Inglaterra, tendo os Sex
Pistols como ícones. É a partir daí que a ideologia punk se disseminará e
ganhará força. Posteriormente se transformaria em um movimento.
A cultura
punk se coloca como uma reação direta à cultura hippie, particularmente quanto ao
pacifismo defendido por estes, e à música do rock progressivo, a qual era por
eles considerada complicada demais.
O elemento
juvenil se mostra na valorização da rebeldia e na filosofia do “faça você
mesmo”, uma busca ansiosa por viver intensamente o presente e que os leva a se
oporem energicamente ao rock progressivo que exigia um significativo período de
formação musical, tempo este que na cabeça de um jovem não existe. A busca do
punk era o “aqui e agora”, sua música é simples, rústica. Não exigia nenhum
conhecimento técnico. Ela é um veículo para a manifestação imediata de
sentimentos e idéias extramusicais, de sua agressividade. O que valia era o que
eles chamavam de “atitude”, ou seja, a expressão de um posicionamento politicamente
crítico perante a vida, sempre com uma postura rebelde e agressiva. Esse
posicionamento trazia em si elementos de ironia, anarquia e valorização da
liberdade individual.
O rock e o fim da Era
de Ouro
A música é
uma prática social e, para compreendê-la mais amplamente, é necessário também
saber como é o cenário em que ela surge.
Terminada a
Segunda Guerra Mundial o bloco aliado, que havia vencido o eixo fascista, se
desfaz e o mundo fica dividido entre o campo de influência dos EUA e o de
influência soviética. É o cenário da Guerra Fria, período que durou até o final
da década de 1980 e durante o qual o mundo ficou à mercê de uma possível
Terceira Guerra que assombrava a todos com a possibilidade do uso das armas
nucleares e de uma possível destruição da vida humana na Terra.
Na zona
capitalista os EUA exerceram sua dominação militar, política, econômica e
cultural de forma abrangente, impondo seus interesses culturais e valores,
muitas vezes através do uso da força. O rock veio a ser um dos elementos que
faziam parte do pacote de imposições daquele país em seu processo imperialista.
Para os
países mais ricos do bloco capitalista os 30 anos (aproximadamente) que se
seguiram ao fim da Segunda Guerra foram marcados por um desenvolvimento
científico e humano e acúmulo de capital sem igual na história da humanidade, período
este que ficou conhecido como a “Era de
Ouro” (enquanto para o chamado Terceiro Mundo restou a pobreza, a violência
e os golpes militares seguidos de assassinas ditaduras, ambos promovidos direta
ou indiretamente por Washington, tudo isto tendo como pano de fundo o fantasma
e a paranóia de um possível avanço comunista na área de influência
capitalista).
Mas, esse
período chegou ao final no ano de 1973 com a crise da Organização dos Países
Produtores de Petróleo - OPEP (em combinação com outros fatores, entre os quais
a explosão salarial, o colapso do sistema financeiro internacional de Bretton
Woods em 1971 e o boom de produtos de 1972-3) - durante a Guerra do Yom Kippur (Egito e Síria contra Israel), após a qual os
preços dessa mercadoria dispararam e balançaram a economia do mundo todo (com
exceção dos grandes produtores). Com suas economias enfraquecidas após um longo
período de bonança os países ricos viram reaparecerem problemas socioeconômicos
que, simplesmente, uma geração inteira não havia conhecido, como o desemprego.
Outro dos
fatores foi o enfraquecimento da economia e da supremacia estadunidense. Uma
das principais causas, além da Guerra do Yom Kippur, foi seu envolvimento na
Guerra do Vietnã, uma tentativa de supressão de um regime comunista que custou
muitas vidas, muito dinheiro e a desmoralização do império estadunidense após uma
derrota em uma luta que durou dez anos (1965-1975).
Também
de interesse para nosso tema, a revolução cultural de maio de 1968 foi marcada
pela mobilização dos estudantes em diversas partes do mundo naquele ano. Era a explosão
de estudantes cuja idade não lhes permitia saber o que era uma vida de
precariedade econômica, como a que seus pais haviam vivido (cenário dos países
desenvolvidos). Porém, é digno de nota que a contestação cultural dos
estudantes apontava para uma busca de valorização da individualidade e do
prazer. Desta forma, suas reivindicações confluíam com os interesses do mercado
(o neoliberalismo começava a se fortalecer e lançaria em poucos anos seu ataque
bem-sucedido contra as práticas keynesianas,
até então em voga), já que a satisfação de desejos pueris, vaidades e prazeres
imediatos é uma arma fundamental que o marketing e a publicidade usam para
enlaçar os consumidores em potencial (e dessa época em diante desenvolveria, cada vez mais, táticas mais agressivas de vendas).
O fim da
Era de Ouro trouxe consigo uma intensa desintegração de valores, uma atomização
da sociedade e uma frenética busca pelo prazer individual. A economia,
transnacionalizada e com flutuações imprevisíveis, deixara os salários expostos
à competição externa, enquanto os governos nacionais não tinham mais força para
intervir e controlar a economia nacional. A Era de Ouro instalara uma
progressiva substituição da mão-de-obra humana por máquinas. Porém, isto não
era um problema enquanto havia estabilidade econômica, pois os Estados
nacionais (outro elemento que começou a ser corroído ao longo desse período)
conseguiam aliviar os trabalhadores afetados com medidas de proteção social. No
entanto, quando esse período chegou ao fim, tais proteções já não funcionavam
com eficiência e uma geração que crescera acostumada com o pleno emprego entrou
em choque quando este começou a faltar.
A partir daí o que se viu foi uma queda constante no número de empregos,
particularmente para os trabalhadores de baixa qualificação profissional,
nesses velhos países industrializados. O resultado foi a perda de referência
social, com uma consequente desorientação e insegurança social generalizada
diante de uma economia (e empregos) instável.
É deste
cenário, mais especificamente, que se origina o movimento punk. Ele é a
expressão da reação hostil a uma situação social por parte de uma geração que
fora acostumada com uma condição social sem precedentes que ocorrera para uma
certa parcela da população mundial em um específico período de tempo e momento
histórico da humanidade.
O rock
progressivo, por sua vez, é consequência do movimento hippie, que por sua vez
está ligado diretamente à reação civil estadunidense contra a Guerra do Vietnã.
Nesse período originou-se uma reação mundial com característica pacifista, se
opondo à opção bélica na resolução de conflitos, um período em que o ocidente
voltou seus olhos para o oriente, enaltecendo seus valores, princípios e
filosofias e buscando inspiração em soluções como o enfrentamento pacífico com
o qual Gandhi havia conduzido o povo indiano à libertação do domínio inglês.
Essa música
traz em si, assim como o movimento hippie, um caráter otimista, suscitando a
reflexão e a contemplação. Tem, desta forma, inconfundíveis raízes na Era de
Ouro e no lastro de prosperidade que ela proporcionou aos habitantes do chamado
Primeiro Mundo.
1980 – triunfo do
punk rock
Como já
apontamos, o punk rock surge como uma contestação do rock progressivo num
momento em que essa música estava no auge de seu sucesso. Seus participantes,
vítimas da situação econômica precária que se estabelecia (isso é mais válido
para o cenário inglês, pois nos EUA os integrantes de grupos punk tinham origem
mais da classe média que da classe pobre) com o fim da Era de Ouro, olhavam para
os músicos progressivos e os identificavam com o status quo, ou seja, tudo que
eles desejavam contrariar e superar. A complexidade e duração das músicas, seu
caráter onírico e reflexivo, sua dificuldade técnica, a postura, aparência e
origem social dos roqueiros progressistas, todos estes eram fatores que os
punks viam como uma realidade opressiva, sem sentido e que não satisfaziam as
necessidades imediatas que sua condição social juvenil os impelia.
De 1974
(ano que se costuma datar o início do punk rock, embora suas raízes se estendam
à década anterior) até 1977 o punk foi ganhando força até estourar
comercialmente no cenário inglês com os Sex Pistols, naquele ano. A partir daí
ele se impôs e o rock progressivo perdeu espaço até praticamente desaparecer
(ao menos no meio mainstream) no início da década seguinte.
Quando o ano de 1980 chega o domínio
do punk já era absoluto na música comercial veiculada pela indústria cultural
capitalista. De estilo alternativo, virara mainstream. Sua ideologia de base
era vertida para objetivos comerciais. A rebeldia estava na moda e, como tal, foi
formatada.
A New Wave,
uma ramificação do punk, assumia ares ainda mais comerciais e se instalava na
preferência juvenil.
O rock
progressivo estava liquidado como estilo dominante das gravadoras. O punk e sua
ideologia (embora agora já bastante travestida) havia vencido.
A virada de
década deixava claro que o punk havia conquistado a cultura comercial
ocidental. Seu comportamento, modos de vestir, de falar, a ironia e a rebeldia
haviam penetrado no modo de ser das pessoas e, particularmente, sua música exercera
impacto em diversos grupos de rock, até mesmo nos grupos de rock progressivo
que conseguiram se manter (e, para isto, tiveram que transformar sua música e
sua atitude).
Um exemplo
notável disso podemos ver no Yes, que fora um dos ícones do rock progressivo ao
longo dos anos de 1970. No ano de 1980 eles lançaram o álbum Drama, que foi
marcado pela ausência dos integrantes, talvez, mais representativos do grupo, o
cantor Jon Anderson e o tecladista Rick Wakeman. As músicas desse álbum
apresentam um estilo musical significativamente diferente daquele pelo qual o
grupo era conhecido, trazendo um caráter mais veloz, fluido e, em alguns
momentos, pesado. Não chega a ser uma música punk, mas, em alguns pontos lembra
o heavy metal. Ou seja, é um Yes que simplifica sua música, trazendo-a para
mais próximo do espírito da nova época (de certa forma este álbum parece
antever o que futuramente seria chamado de metal progressivo, uma mistura de heavy
metal e rock progressivo).
Para exemplificar, o
leitor será convidado a ouvir primeiramente “Close to the edge” e “Gates of Delirium”, duas
músicas muito importantes da carreira do grupo e exemplares do estilo
progressivo como um todo.
Close to
the edge
Gates of
Delirium
Em seguida, para compará-las com uma música dessa fase de transição, sugere-se a audição da
música “Tempus fugit”, do álbum Drama, de 1980.
Tempus fugit
No álbum
seguinte – 90125 – o Yes desenvolveria um estilo que, embora não fosse mais o
rock progressivo da década anterior, era ainda uma música bastante atraente,
embora com um certo apelo comercial. Foi um grupo que encontrou uma solução
bastante inteligente, equilibrada e musical de continuar seu trabalho em um
tempo diferente. O melhor exemplo desta fase talvez seja a música “Changes”. Posteriormente
o Yes retomaria o estilo progressivo da década de ouro do rock, mas, jamais com
o mesmo brilho que obtivera naqueles anos.
Outro
exemplo digno de nota é o grupo Queen, do famoso cantor Fred Mercury. Embora
esse grupo não fosse rotulado como progressivo, sua música produzida ao longo
da década de 1970 trazia muitos elementos com os quais poderia ser classificado
como pertencente a esse estilo. Porém, na passagem para os anos oitenta também
fizeram uma virada marcante, vindo a produzir músicas com um apelo muito mais
comercial que nos anos 1970. Basta comparar músicas dos primeiros álbuns, como,
por exemplo, “Prophet song” e “Bohemian Rhapsody”, com “I want to break free”,
da fase pós-1970.
O mesmo
aconteceria com todos os grupos que sobreviveriam aos anos 1970 e adentrariam
nos anos 1980. O caminho era a simplificação e o exemplo do Yes da nova década resumia
o que os novos tempos traziam para o rock: música mais simplificada, apelo pop,
mais vendável, aparência dos integrantes diferente, músicas mais curtas, mais
diretas, menor complexidade, anunciado na TV, cantor novo, mais jovem,
guitarrista velocista, mais “leve”.
Ventos neoliberais
Finda a Era
de Ouro do capitalismo pós-1945, os liberais novamente mostraram suas garras e
voltaram a dominar a política ocidental. Em 1979 Margaret Thatcher assumia o
cargo de primeira-ministra do Reino Unido. Seu governo restabeleceria o domínio
das idéias liberais na política mundial. Privatizações, desemprego em ascensão,
diminuição de benefícios sociais, cortes de investimentos sociais, aumento
acelerado da desigualdade social e todas as demais marcas da ideologia liberal
seriam trazidas de volta para o cenário dos novos tempos. O mundo parecia ter
esquecido que foram eles os responsáveis pela Grande Depressão (1929-33) que,
por sua vez propiciara o surgimento do Nacional Socialismo de Adolf Hitler e,
consequentemente, levara à Segunda Guerra Mundial.
No ano
seguinte, Ronald Reagan seria eleito presidente dos EUA redirecionando a
economia capitalista para os moldes que Thatcher já estabelecera em seu país.
O Thatcherismo exerceria
influência (negativa) em todo o mundo. O ideário neoliberal promoveu
transformações culturais – pois um movimento como esse precisa ganhar corações
e mentes para se manter vivo. Desta maneira, os aparatos de dominação cultural-ideológica (mídias, cinema, televisão) passaram a promover o imaginário do
empreendedorismo, divulgando para a população, particularmente para os mais
jovens, o ideal da competitividade e do “self-made man”, influenciando os
jovens com idéias que os instigassem a serem agressivos e empreendedores
(meritocracia), pois esse estilo de vida seria o caminho para se obter sucesso
e enriquecimento.
Isso é muito notório se
observarmos o cinema hollywoodiano da época. Nos filmes dos anos 1970 vemos com
frequência jovens hippies retratados em seus modos de viver e seus ideais de
coletivismo e harmonia. No início dos anos 1980 esse perfil retratado muda
rápida e radicalmente. As telas dos cinemas comerciais ocidentais são invadidas
por jovens frios, metidos em paletós e gravatas, correndo atrás de vidas
(superficiais) focadas na carreira e no sucesso financeiro, tendo o
individualismo como filosofia de vida.
Nesse momento – a virada para os
anos 1980 – o mundo perdia o brilho dos anos de sonho, da contra-cultura dos
anos 1960, do sonho de superação do capitalismo suspirado pelo maio de 1968, do
pacifismo (“paz e amor”) fortalecido pela insatisfação pela Guerra do Vietnã,
do fortalecimento da consciência ecológica no ocidente.....
Thatcher e Reagan assassinaram
uma era.
Definitivamente, “o sonho acabaria”
em 1980 (é nada menos que o ano da morte de Lennon).
A chegada do yuppie e
a simplificação
Inevitavelmente
a ideologia neoliberal se infiltraria também na cultura, de modo geral. A
relação indivíduo/sociedade sofrera transformações e os ideais individualistas
permearam a mentalidade das pessoas, estimulando atitudes mais egocentradas e
uma busca desenfreada pelo prazer, em detrimento de valores coletivistas.
Nesse
cenário surge a figura do yuppie (derivação de “yup” – young urban
professional) que viria a substituir o hippie das décadas anteriores no cenário
das grandes cidades.
Delineia-se o perfil da nova era:
a juventude deixa de se atentar para questões da natureza, de paz e amor, de
direitos e igualdade e passa a se preocupar com a carreira profissional, com a
competição selvagem aos moldes de um capitalismo desenfreadamente desumanizado.
A indústria da música se favoreceria.
Músicas mais fáceis para uma população menos instruída (em termos de educação
generalista, ao contrário de uma educação especialista) ou que tem desinteresse
em desenvolver a escuta, a percepção e o conhecimento a respeito do mundo.
Venda rápida, descarte quase imediato. E passa-se para a próxima música, sem
que a que se acabou de ouvir tenha proporcionado alguma reflexão mais duradoura
para o ouvinte. É o que o historiador da arte italiano Gillo Dorfles aponta
como “perda do intervalo de fruição” das obras artísticas numa cultura
neoliberalista que coloca o consumo como o fator essencial da vida humana.
E foi justamente o que foi focado
nessa virada dos anos 1970 para 1980. A simplificação em favor do comércio. Os
grupos de rock reapareceram moldados pela nova ideologia.
A música dos anos 1970 tinha as
marcas do movimento hyppie e da contra-cultura dos anos 1960. Tais movimentos,
marcados por ideais libertários, certamente seriam combatidos pelo ideário
conservador e funcionalista da era Thatcher/Reagan.
Não se admitiriam, nos novos
tempos, música longas, com temas oníricos, caráter meditativo e referências ao
oriente. Era desejável uma música mais “ligeira”, “objetiva”, impactante,
direta, fácil, ritmicamente marcante, porém, superficial. Algo que “colasse”
rapidamente, que não permitisse sonhar, meditar, refletir, pensar.
Consciente ou inconscientemente a
nova ordem do mundo estava tratando de varrer do horizonte quaisquer resquícios
que remetessem aos enfrentamentos que o modo de vida que interessa ao capital
sem limite tinha sido submetido nas décadas anteriores.
O punk rock foi
realmente uma oposição ao sistema que desejava combater?
Como a
música não é uma área valorizada na cultura ocidental, muitas idéias equivocadas
sobre essa arte são difundidas pelo senso comum, idéias estas que o grosso da
população, não informada sobre o campo, toma como certas. Uma dessas é a crença
de que música política é simplesmente uma canção com uma letra de protesto. O
fato é que música e política se relacionam de maneiras muito mais complexas que
uma simples letra de canção possa vir a sugerir. E esta relação se reflete em
elementos puramente musicais, independentemente de qualquer fator extramusical
como um texto possa vir a ter grande significação.
O
aparentemente simples fato de o rock progressivo (e também a música hippie, o
rock psicodélico e, mesmo em alguns casos, até mesmo a disco music) criar um
ambiente acústico que remete ao onírico, à contemplação e à reflexão,
características estas pouco enfatizadas em nossos tempos amplamente dominados
pela ideologia neoliberal, por si só já remete a questões
histórico-político-econômicas, já que elas apontam que os anos de 1960 e o
início dos de 1970 possibilitaram que outras concepções de vida fossem
consideradas como válidas. Elas remetem a uma época em que as pessoas sonhavam
mais, eram menos seduzíveis pela indústria cultural e apegadas a valores
coletivistas.
O rock
progressivo, nascido no final dos agitados anos de 1960, herdeiro do rock
psicodélico e do pacifismo hippie, convidava seus ouvintes a “viajar” com suas
longas músicas, trazendo um enriquecimento dos elementos musicais do rock,
focando em diversas influências, com uma literatura de base mais rica e com uma
instrumentação também ampliada.
Essas características foram
atacadas com a ascensão do punk. O progressivo foi taxado de aristocrático,
criticado por ser supostamente conservador e criar um distanciamento entre o
músico e o ouvinte, afastando o aspirante juvenil a músico, que desejava fazer
uma música de “atitude” e se sentia podado por ter que “estudar 10 anos” para
poder fazer música (como se 10 anos fosse muita coisa!).
Os punks, por mais sincera e bem
intencionada que fosse sua ideologia, se equivocaram. Se por um lado seu desejo
de fazer música como algo mais democrático e acessível para quem assim
desejasse e o intuito de fazer da música um elemento de protesto, uma forma de
fazer política eram características nobres, por outro lado, a idéia de uma música
mais fácil e de impacto direto se mostrou com o tempo um verdadeiro “tiro pela
culatra”, pois isso foi usado pela indústria cultural (pertencente ao
“sistema”, tão fortemente combatido pelo movimento punk) a favor dela para
facilitar sua venda de música, tratada como mercadoria e, desta forma, lhe
interessava produtos de fácil acesso e penetração num público que já não era
mais tão exigente quanto ao que ouvia, pois seu gosto já tinha sido moldado
pela música punk para a audição de músicas mais simples.
Desta forma, a música punk
pavimentou o caminho para uma indústria cultural agressiva e poderosa que
cresceu sem freios nos anos e décadas seguintes. Deste modo, se o rock
progressivo apresentava ares aristocráticos, com uma música que exigia mais
preparo de seus ouvintes, por outro lado ele também trazia algo que era um
impeditivo para o estabelecimento de uma indústria cultural mais selvagem, pois
uma música mais rica propicia experiências estéticas mais enriquecidas e,
consequentemente, promovem um maior desenvolvimento da percepção e da
sensibilidade de seus ouvintes, características estas que são enriquecedoras da
experiência humana e comumente são desprezadas pelo capitalismo mais ganancioso,
que só se interessa pela arte na medida em que ela possibilite a multiplicação
dos lucros das empresas, independentemente das consequências de suas ações.
Sendo assim, o rock progressivo
também tinha em si algo de anti-hegemônico, o que não foi percebido pelo
movimento punk na época (não somente na época, mas até os dias atuais!), que se
estreitou a atacar o que considerava de “equivocado” no movimento adversário. O
“melhor dos mundos” teria sido um enlace da qualidade de experiências estéticas
que o rock progressivo propiciava com a conscientização social que o movimento
punk pregava. A grande saída seria ter unido essas duas propostas e não as antagonizado.
O que há de mais intenso na música e que, de
fato, afeta as pessoas mais profundamente são suas características internas de
organização sonora. A letra, no melhor dos casos, é apenas um complemento. A
música, como sabido há milênios pela humanidade (basta voltar-se aos antigos
gregos, indianos, assírios e outros povos) exerce efeitos de diversas ordens sobre
o ser humano. Platão, por exemplo, chegou a propor uma educação dos chamados
cidadãos livres gregos tendo a música como eixo, pois ele acreditava que os
futuros dirigentes da polis seriam bons ou maus governantes mediante o tipo de
música que cultivassem e uma educação que não orientasse os jovens para o que
ele entendia como “boa música” poderia conduzir a polis para a desagregação. Na
China antiga também encontramos preocupações semelhantes quanto à música no
sentido de intervir na condução de um bom ou mau governo, já que nessa civilização
essa arte tinha um papel significativo nos ritos de condução da administração
do império.
O poder dos sons para afetar os
seres humanos é muito maior que o poder das palavras, mas, como no ocidente a
palavra adquiriu um poder desequilibradamente superior aos demais domínios e a
música, por sua vez, tem papel secundário e desvalorizado, é comum
interpretações como as que exaltam, por exemplo, que o papel político de uma
música está em sua letra. Há um exemplo
bastante ilustrativo dessa questão no cenário da música popular brasileira do
final da década de 1960.
No
final da década de 1960, já balançado pela ditadura instaurada desde 1964,
promovida pelos EUA, instaurou-se no cenário musical brasileiro um embate entre
duas vertentes de música da época. Uma era a chamada “Jovem guarda”, protagonizada
por Roberto Carlos e Erasmo Carlos e caracterizada por músicas “leves”, com
caráter de alegria e descontração, inspiradas no rock and roll estadunidense do
final dos anos 1950 e início dos 1960. Foi fortemente criticada por sua
alienação em relação à séria situação política do cenário brasileiro.
Outra
vertente era a da MPB, tendo expoentes como Chico Buarque e Geraldo Vandré,
entre outros e musicalmente focada no aproveitamento do folclore musical brasileiro
adicionado de letras críticas, procurando afrontar ou ao menos ironizar o
regime ditatorial instalado.
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Porém,
a essas duas antagonistas surgiu uma terceira vertente, sincrética e muito mais
abrangente e culturalmente rica: o Tropicalismo. Os tropicalistas fundiram tendências
nacionalistas com internacionalistas, misturando a MPB com o rock and roll
(incluindo o rock progressivo), psicodelia e adicionando, sem preconceitos, a
guitarra elétrica tão hostilizada na época pelos nacionalistas, taxada como
elemento invasor. Foram mais longe ainda, incluindo elementos das vanguardas
experimentais da música erudita da época, perfazendo um riquíssimo movimento
cultural que trazia ecos do Movimento Antropofágico do modernismo brasileiro da
década de 1920. Altamente libertário, o Tropicalismo não durou muito como
movimento. Foi reprimido, Caetano Veloso e Gilberto Gil, talvez seus grandes representantes,
foram presos já em 1968 e em breve o movimento foi disperso, mas sua influência
na cultura brasileira permaneceu, sua irreverência impactou o país na política,
no comportamento, na moda, na moral, na sexualidade e, claro, na música. Em
suma, um magnífico exemplo de que a letra é um componente com efeito secundário
em relação à música.
Retomando nossa linha de raciocínio, é também digno de nota colocar que
o embate do punk rock contra o rock progressivo aconteceu no plano de uma
disputa de mercado, o que, por si só, já fala contra as alegadas pretensões
políticas anti-sistema do movimento punk. Talvez, o posicionamento mais
coerente por parte do movimento punk seria não ter entrado nessa disputa (que é
o que muitos seguidores do movimento até os dias de hoje fazem, se recusando a
disputar o sucesso e se resignando a viverem num cenário underground, alternativo,
não flertando com o mainstream).
O punk serviu como uma ferramenta
nas mãos do poder financeiro, sua revolta foi canalizada e apropriada pelo
capital. O movimento punk venceu o rock progressivo na batalha pelo sucesso,
mas foi apropriado pelo sistema o qual sua ideologia pretendia atacar. O rock
progressivo não era o “mal”.
A ação
política não se dá somente com atitudes viscerais como as que o punk incitou,
ou como os movimentos sociais de hoje impingem. Ela também se dá no campo
diplomático (muitas vezes bem mais efetivo que a ação visceral) e no campo
simbólico (o mundo de sonhos que o rock progressivo e o rock psicodélico
materializaram, por exemplo). Hoje pode-se notar, com o distanciamento, que era
um enfrentamento ao status quo como o conhecemos hoje, ou seja, um mundo de
embotamento dos sentidos, um mundo do “fácil”, do cotidiano banalizado, de
músicas “instantâneas”, de atitudes revoltosas perfeitamente englobadas no
sistema – veja-se as calças rasgadas ou as camisetas com fotos do Che Guevara ou
de ídolos do rock sendo vendidas em shopping centers!
Se o movimento punk por um lado
era alinhado com um ideário de justiça social, tendo, entre outras coisas,
instigado o surgimento de gravadoras independentes e fanzines e promovendo o
afastamento das grandes corporações da indústria cultural (por algum tempo),
por outro abriu caminho para o simplório, para o mais facilmente vendável, para
a pobreza de imaginação, para a atitude violenta, para o comercial. Deste modo,
acabou, sem querer, pavimentando o caminho da atual indústria cultural da
música. A atitude punk foi devidamente embalada, rotulada e vendida a bons
preços no varejo ou até mesmo como grife!
De qualquer
maneira, é inegável que o punk mudou o aspecto do rock: a alegria, o colorido e
a paz e o amor dos hippies e a profunda reflexão que os progressistas
convidavam foram transformados e obscurecidos pela “atitude” furiosa do punk, levando
o rock para outros caminhos, tornando-o mais seco, menos lírico, mais agressivo
e adotando progressivamente (junto com a ascensão de outros estilos, como o
heavy metal ou derivados dele) a cor preta como seu símbolo, com o passar dos
anos.
TEXTO RELACIONADO
Música e política: para além do senso comum
REFERÊNCIAS
História social do jazz
Eric Hobsbawm
PAZ E TERRA
Era dos extremos – O breve século XX
Eric Hobsbawm
CIA DAS LETRAS
Elogio da desarmonia
Gillo Dorfles
MARTINS FONTES
A República
Platão
PERSPECTIVA
História Universal da Música
Roland de Candé
MARTINS FONTES
PERSONAGENS E CONCEITOS
Era de Ouro
período que se estende do final
da Segunda Guerra Mundial (1945) até 1973 e que, segundo Hobsbawm, foi
caracterizado por um consenso político entre a direita e a esquerda dos países
industrializados ocidentais possibilitando arranjos pactuados entre governos,
patrões e trabalhadores os quais se caracterizavam por um planejamento seguro a
longo prazo que permitiam às empresas alcançarem altos lucros e pagarem bons
salários e benefícios para os trabalhadores, além de uma seguridade solidamente
estabelecida por conta de um Estado estabilizado e sustentado por uma grande
arrecadação. Depois de quase 30 anos de
crescimento econômico inaudito que a Era de Ouro proporcionara aos países
desenvolvidos, na década de 1970 e, principalmente, a partir da crise do
petróleo de 1973 a pobreza e a desigualdade social voltaram a aumentar no mundo
rico (no mundo pobre, apesar de significativas diferenças, ela nunca fora
abolida, países como o Brasil nunca chegaram a estabelecer um verdadeiro Estado
de Bem-Estar Social) evidenciando uma crise que se instalaria definitivamente
até nossos dias e que apontava que as políticas keynesianas (baseadas na
centralização da economia nas mãos do Estado, tendo como metas principais,
entre outras, o pleno emprego, a valorização dos salários e a ênfase em medidas
de seguridade social) já não davam mais conta de garantir a estabilidade da
economia, abrindo espaço para os ideólogos liberais (“teólogos”, como
ironicamente denomina Hobsbawn) ressurgirem após décadas de obnubilação desde
que tinham mergulhado o mundo nas trevas da Grande Depressão, a qual gestara o
Nacional Socialismo alemão hitleriano e levara o mundo à Segunda Guerra
Mundial.
Guerra do Yom Kippur
conflito árabe-israelense em
outubro de 1973. Os grandes produtores de petróleo do mundo árabe, membros da
OPEP, aumentam o preço do barril de petróleo em represália aos Estados Unidos e
outros países que apoiavam Israel na guerra, causando uma recessão mundial,
ocasionando a chamada segunda Crise do Petróleo, que assinala o fim da Era de
Ouro do capitalismo pós-guerra.
Práticas keynesianas
em referência a John Maynard
Keynes (1883-1946), economista britânico pioneiro da macroeconomia. O
keynesianismo é baseado na intervenção estatal na economia de forma a se
garantir a manutenção do pleno emprego. Sua teoria econômica foi aplicada em
massa no pós-1945 na reconstrução das economias afetadas pela guerra nos países
europeus, gerando o que ficou conhecido como Estado de Bem-Estar Social, ou
seja, um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado como
agente de promoção social e organizador da economia, garantindo, assim, padrões
mínimos de educação, saúde, habitação, renda e seguridade social para os
cidadãos. Foi idealizado com o intuito de se eliminar as possibilidades de
ocorrência de uma nova Grande Depressão, como a de 1929-33.
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