A música de Rohmer: silêncio, paisagem sonora, acaso e o mundo secreto das idiossincrasias humanas
ROHMER
Erich Rohmer, cujo nome de
nascimento era Jean-Marie Maurice Schérer, nasceu em 1920 e foi um dos notáveis
componentes da chamada “Nouvelle Vague”, movimento artístico do cinema francês
surgido no final dos anos de 1950 e que abriu novos caminhos na maneira de se
fazer cinema.
Foi diretor, escritor, professor
de literatura, jornalista, editor e crítico de cinema, sendo um dos fundadores
do “Cahiers du cinéma”, publicação que serviu de impulso para o movimento da
Nouvelle Vague.
Assim como alguns de seus
personagens, Rohmer sempre manteve um comportamento diferenciado do que é tido
como comum em nossa cultura: recusou-se a ter veículo próprio, sua mãe nunca
soube de sua carreira como cineasta famoso (já que o jovem Jean-Marie fora
contrariado em casa por seu desejo de seguir o caminho artístico), fugia das
entrevistas e, quanto ao fazer cinematográfico chegava a ser tão meticuloso a
ponto de atrasar filmagens por um ano só para captar cenas realistas, como em
Ma nuit chez Maud (Minha noite na casa de Maud ou Minha noite com ela), no qual
o diretor queria captar as cenas do Natal conforme aconteciam na cidade, se
recusando a montar as cenas – um comportamento original para um artista
original!
O CINEMA DE ROHMER
Rohmer foi,
como disse André Barcinsky, “o cineasta das palavras”. Seu cinema é o cinema
dos diálogos.
Não é tarefa simples tipificar a
obra de Rohmer (se é que rotulação seja algo útil ou necessário). Há quem o
caracterize como um conservador em meio a um grupo de criadores progressistas,
como ficou conhecida a Nouvelle Vague. No entanto, Rohmer, que continuou dando
vida a personagens jovens mesmo ele próprio já sendo idoso, se analisado a
partir dessa característica, a saber, o enfoque no cotidiano, talvez já
estivesse a frente de toda a sua geração. As artes e o modo de viver de nossa
sociedade ocidental passam por significativas transformações desde o final dos
anos de 1970, já com o fim da Guerra Fria e mais ainda após o declínio desta e
dos anos 1980, assumindo características que muitos autores passaram a chamar
de período pós-moderno. Nessa nossa era atual uma grande ênfase foi depositada
no cotidiano das pessoas, ênfase esta que pode ser observada, entre outras
características, na popularização dos telefones celulares, das redes sociais e
de programas de televisão do tipo “Big Brother”, todos estes elementos que
focam no cotidiano das pessoas, invadindo e expondo sua intimidade, criando uma
ilusão contemporânea de “liberdade”, de que tudo tem que ser mostrado e que há
câmeras em todos os recantos da vida. Outra característica poderia ser
distinguida na preferência de nossos tempos por uma arte que seja mais “clara”,
sem grandes complexidades, mais fluida, diferentemente do período das
vanguardas.
Sua obra é
um mergulho no cotidiano dos personagens. É uma obra que foca o que é mais
humano e realista dos personagens.
Seu cinema expõe aquilo que é
mais simples, banal no ser humano (muitas vezes, sim, particularidades do
comportamento francês, como ele muitas vezes foi acusado de chauvinista),
porém, o mais profundo de nós mesmos. O tema do amor, por exemplo, é
recorrente, mas ele não enfatiza o assunto do ponto de vista externo, como
outros cineastas fazem, focando nas juras, no envolvimento, nos gestos e
atitudes triviais. Rohmer foca no sofrimento, nas dúvidas, nas angústias, nos
pensamentos e pequenas alegrias que os personagens vivem consigo mesmos, na
intimidade de seu cotidiano, na interioridade de seu ser. Realidades que
comumente não são manifestas para os demais, que não chegam aos olhos dos
outros, mas que todos nós experimentamos em segredo.
Em sua obra encontramos um
marcante contraste entre o que seus personagens dizem e o que eles fazem. Isso
porque esse autor traz para a tela a trivialidade do dia a dia aproximando,
assim, a vida desses personagens com a vida de pessoas reais.
Rohmer expressa o mais íntimo e
simples de nós mesmos, aquilo que nos constrangemos de revelar para os demais.
Ele é um indiscreto! Atua no micromundo de nossa intimidade mais recôndita...é
lá que estão suas câmeras!
Talvez por isto ele valorize
tanto os diálogos, pois é através deles que, espontaneamente, esse mundo se
revela.
É também por isso que esse
diretor dava liberdade para seus atores criarem, junto com ele, propiciando,
assim, que os diálogos nascessem de maneira livre e se adquirissem aspecto mais
natural e realista.
...lá estão
suas câmeras...no micromundo de nossa intimidade mais recôndita...
Seus personagens preferidos são
jovens, figuras nas quais fica mais fácil enfatizar o elemento da dúvida, tão
presente em sua produção.
No entanto, apesar do foco em
figuras semelhantes (jovens, universitários, pessoas da classe média, etc), é
irresistível projetar o universo pessoal desses personagens para o de cada um
de nós, pois, embora o universo de Rohmer tenha um perfil étnico, social e
cultural bem marcados, no fundo ele está tratando de pessoas e suas
idiossincrasias, seus mistérios do dia-a-dia. Pois Rohmer centra sua câmera no
cotidiano dessas personagens, em suas esquisitices, em seus momentos mais
simples (apesar de muitas vezes isto estar enevoado por complexos pensamentos
filosóficos).
Confesso que toda vez que vejo um
filme desse mestre francês chego a ficar constrangido. Me parece que vendo seus
personagens tendo seus mais íntimos e pueris segredos revelados é como se os
meus próprios estivessem sendo revelados diante de mim e, principalmente quando
o via nas salas de cinema, o constrangimento era muito maior, pois sentia como
que se os meus próprios segredos estivessem sendo colocados em aberto diante de
todas as outras pessoas no recinto.
Ao mesmo tempo, talvez essa seja
a maior contribuição desse titã da arte, essa magia de nos colocar frente a
frente com esse segredinho de incomensurável valor, que ele consegue tirar lá
do mais íntimo lugar de dentro de nosso ser. Assistir Rohmer é como estar nú
diante das telas, nos sentir expostos diante de todos, ser tocados no mais
profundo recanto de nosso ser.
Rohmer é um
indiscreto!
![]() |
"Minha noite com ela". Fonte: Les Films du Losange |
De certa forma, a obra de Eric
Rohmer já antecipa tais características. Suas histórias apresentam um ar de
leveza e fluidez. Seus filmes, em uma olhada superficial, parecem mais “leves”
e palatáveis do que as obras de alguns de seus companheiros de Nouvelle Vague.
E, principalmente, seu foco no cotidiano, na aparente simplicidade das
situações de vida de seus personagens.
No entanto, o cinema de Rohmer
não é, de maneira alguma, superficial e fácil. É a inventividade e o refinado
métier deste notável cineasta que forja tal ilusão, tornando sua obra mais
convidativa para um público maior do que uma obra vanguardista desejaria ser (e
foi justamente esta característica que trouxe este que vos fala para dentro do
mundo do “grande cinema”, tendo Rohmer como porta de entrada para conhecer um
repertório que me era desconhecido em minha primeira mocidade).
E mais, as
histórias e os personagens deste autor sutilmente apontam para o fato de que a
vida humana, naquilo que ela tem de mais profundo, não pode ser explicada pela
razão. Seus personagens demonstram fragilidades, são fortemente suscetíveis a
superstições, marcadamente emotivos e intuitivos, assim como são os seres
humanos no mundo real.
Embora seu cinema seja o cinema
dos diálogos, no fundo o que seus personagens dizem frequentemente é contradito
por suas ações. Suas decisões acabam sendo influenciadas muito mais por seus impulsos
do que pelo que dizem.
E ainda, os destinos desses
personagens sempre passam por acontecimentos fortuitos, lances do acaso que,
mais que os discursos e as decisões que eles tomam ao longo das histórias,
acabam sendo os determinantes últimos de seus caminhos.
Desta forma, Rohmer nos diz que a
vida das pessoas em muito pouco é regida pela razão. Portanto, considerando-se
que a cultura ocidental, desde ao menos o século XVIII, tem sido norteada pelo
culto à razão, a partir do projeto iluminista, então podemos inferir que há na
obra desse cineasta francês uma significativa crítica à cultura.
E, sendo assim, mais uma vez
podemos dizer que seu pensamento está em sintonia com as correntes de
pensamento mais recentes, que colocam em questionamento esse projeto iluminista
europeu, excludente, imperialista e opressor, estando entre essas linhas a já
referida corrente da Pós-Modernidade, cujos defensores apontam que a crença na
razão é um projeto fracassado e que não é mais possível dar explicações para os
questionamentos atuais tomando-se por base as metanarrativas, ou seja, grandes
linhas de pensamento que possam dar respostas amplas para todos os problemas do
mundo.
Enfim, podemos, a partir disto,
concluir que as críticas dos detratores de Rohmer que o acusam de ser
conformista e, no espectro político, posicionado à “direita” (se é que essa
visão de direita x esquerda ainda seja algo coerente em nossos dias) são
superficiais. Se num nível superficial o vemos focando seus filmes em ambientes
e personagens de classe média, por outro lado, numa visão mais aprofundada
conforme acabamos de expor, este autor está fazendo uma profunda crítica à
sociedade ocidental dos últimos séculos, nos apontando que o discurso que privilegia
a razão como imperante em nossas vidas é falho, pois os seres humanos, no nível
mais profundo de sua subjetividade, parcamente operam com a razão. Os seres
humanos continuam, como antes, a agir de maneira espontânea, acreditando em
superstições, privilegiando o ilógico, o irracional e deixando-se levar pelo
acaso.
CINEMA E DIÁLOGOS –
ANTES E DEPOIS DE ROHMER
Eric Rohmer não foi o primeiro
autor a enfatizar o uso de diálogos como elemento de importância na
constituição de seus filmes. O japonês Yasujiro Ozu (1903-1963) já havia, antes
dele, se enveredado por esse caminho, embora cada um tenha uma personalidade
própria. O diretor japonês usava o silêncio e a paisagem sonora como elementos
de destaque, mas adota música extradiegética com mais frequência que Rohmer,
colocando-a em pontos de transição de cenas. Ozu trabalha com temáticas
diferentes, se enveredando nas profundezas da alma humana e especulando sobre
os sentidos do viver, como no monumental “Era uma vez em Tokyo”, de 1953.
Diferentemente da leveza de Rohmer, Ozu é mais denso, sua paisagem sonora evoca
o silêncio e o vazio da existência. Sua câmera, fixa, captura a
excepcionalidade do cotidiano da cultura japonesa enquanto a de Rohmer, muitas
vezes em movimento junto com seus jovens personagens, foca na leveza e na
transitoriedade das alegrias e incertezas dessa idade.
Posteriormente, há autores para
os quais a influência de Rohmer parece ter sido importante, como Woody Allen,
Quentin Tarantino e Richard Linklater, pois seus filmes valorizam fartamente o
uso de diálogos ricos e extensos.
O caso de Linklater é
particularmente notório, pois há semelhanças entre sua produção e a do francês
que vão além dos diálogos. Inclusive na preparação do filme, Linklater abre
espaço para os atores tomarem decisões sobre os papéis, assim como Rohmer
fazia, discutindo com seus atores.
A obra de Rohmer promove um interessante
“diálogo” interno entre seus filmes no tocante às atrizes. Marie Rivière, que
em alguns filmes – particularmente em Raio Verde – interpreta personagens mais
frágeis emocionalmente, em “Conto de Outono” apresenta uma personagem que está
casada, equilibrada emocionalmente e procura encontrar uma companhia para a
amiga, interpretada por Beatrice Romand. Romand, inversamente, em outros filmes
rohmerianos, interpreta personagens emocionalmente fortes e que tentam
aconselhar as personagens de Rivière.
Ver suas atrizes envelhecendo ao
longo de seus filmes dá uma sensação de proximidade com suas histórias que é
algo inefável!
Talvez seja este mesmo aspecto
que tenha levado Linklater a usar o mesmo casal de atores a contracenarem em
três décadas seguidas em sua famosa trilogia do amor, a qual rende referência
farta à Rohmer.
![]() |
Eric Rohmer. Fonte: Filmow |
A MÚSICA DE ROHMER
A música de Rohmer é o silêncio.
Se muito do cinema é constituído
sobre a música ou em parceria com ela, o mestre da nouvelle vague a suprimia.
Seu cinema é centrado nos
diálogos.
No entanto, tampouco as palavras
são o ponto máximo de sua busca. Os diálogos são, no fundo, um veículo para
Rohmer nos levar ao que mais lhe interessa: os pensamentos, o mundo interno de
seus personagens.
As palavras, como sempre, dizem
pouco. O silêncio de seus cenários (povoados pela paisagem sonora) deixa campo
aberto para a expressão daquilo que as palavras não conseguem penetrar: o
interior dos indivíduos, de seus personagens com suas idiossincrasias,
“estranhas” e cativantes.
Não por menos, apesar da
verborragia colocada em primeiro plano em seus filmes, o que conta mesmo, no
decorrer de suas histórias, é o indizível. Seus personagens falam, falam,
falam, racionalizam, defendem posições ao longo de longas cenas, mas, em um
momento, de repente, em meio a algum pensamento ou conflito interno não
completamente exteriorizado, os rumos das histórias mudam por alguma
circunstância do acaso...e lá se vai toda a verborragia por água abaixo, seus
personagens assumem rumos inesperados e seguem suas vidas, deixando para trás
qualquer expectativa de coerência racionalizante que nossos ímpetos
moralizantes possam ter alimentado.
O silêncio seria uma estratégia
para enfatizar o mundo interior de tais personagens?
O elemento surpresa é um fator
importante nas histórias de Rohmer, portanto, a ausência de música
extradiegética intensifica a surpresa.
Rohmer enfatiza a vida interior
de cada personagem, seus desencontros, suas idiossincrasias, suas esquisitices,
suas contradições, súbitas tomadas de decisões. Por isto opta por não colocar
sons “externos”, como música, trilha sonora, etc. Seus filmes são povoados quase
que apenas pela paisagem sonora dos ambientes que filma.
É o mundo interior
(dos personagens e, por extensão, do cenário em que vivem) que deve falar, não
o exterior
A música tem um poder maior que o
texto para compor, sugerir e demarcar estados psicológicos. Enquanto a palavra
tende a ter significados mais restritos – ainda que a literatura, como arte,
amplie ao máximo esses limites –, a música é, por excelência, polissêmica. A
linguagem musical não é unívoca. Mesmo que existam sólidas associações
culturalmente produzidas relacionando certos sons, timbres e melodias a significados
específicos, ainda assim, essas associações não podem se comparar ao universo
altamente codificado da língua e suas palavras com sentidos fortemente
redutores.
Portanto, não é de se estranhar
que uma obra como a de Rohmer – na qual encontramos histórias com personagens
que sempre guardam algum mistério, personagens “em aberto”, prontos para seguir
trilhas de algum acaso que, repentinamente, mude os rumos de uma história
aparentemente já traçada – não traga a música para dentro da cena (a parte algumas
raras exceções), permitindo sua ocorrência, quando muito, apenas de forma (intra)
diegética (dentro do contexto da trama). A presença de música extradiegética (fora
do contexto da trama, ou seja, ouvida apenas pelos espectadores e não pelos
personagens) numa obra com tais características, focada nas idiossincrasias e
nos humores cambiantes de personagens “exageradamente humanos”, incoerentes,
indecisos, vibrantes, “polissêmicos”, cheios de dúvidas, simplesmente
arruinaria toda a trama, centrada nos diálogos entre esses personagens, ou
seja, a música competiria com a palavra, antecipando as surpresas e reviradas
de caminhos que são um dos pontos fortes das histórias desse grande mestre do
cinema.
Desta maneira, a música que tem
lugar na obra cinematográfica de Jean-Marie Maurice Schérer é a da paisagem
sonora de seus cenários.
Em Rohmer o ouvido é valorizado,
a audição ganha importância em relação à visão.
PAISAGEM SONORA E
SILÊNCIO
Paisagem sonora é o conceito
criado pelo compositor e educador canadense Murray Schafer e se refere ao
ambiente sonoro de um local, ou seja, o conjunto dos sons provenientes das mais
diversas fontes presentes em um ambiente. Pode ser qualquer campo de estudo
acústico.
Surge nos anos de 1970, seguindo
à invenção da música eletroacústica
que trouxera a emancipação total do ruído, ampliando a concepção ocidental
sobre o que é um som musical, processo este, aliás, que já estava em curso
desde o início do século com os futuristas italianos, como Ferruccio Busoni, Luigi Russolo e, particularmente, com a
obra e o pensamento do compositor francês Edgar
Varèse [conforme já tratamos em outros textos, referidos ao final sob o título “Textos
Relacionados”].
Outro evento de referência para o
estabelecimento do conceito é a valorização do uso do silêncio em música,
ocorrido a partir dos anos de 1950 com a obra de John Cage. Ou seja, escutar o
silêncio permite que se escute os sons do cotidiano, que são em si a paisagem sonora.
Conforme Murray Schafer diz, a
“...abertura dos recipientes espaçotemporais que chamamos de ‘composições’ ou ‘salas de concerto’ para permitir a introdução de todo um mundo novo de sons situados fora delas (em 4’33” Silence de Cage, ouvimos apenas os sons externos à própria composição, que não passa de uma cesura prolongada)” (“A afinação do mundo”, p.20)
A paisagem sonora não é um
aspecto secundário, ela está ligada de maneira intrínseca ao espaço em que
vivemos, mesmo que não tenhamos consciência. De acordo com Schafer:
“...o ambiente acústico geral de uma sociedade pode ser lido como um indicador das condições sociais que o produzem e nos contar muita coisa a respeito das tendências e da evolução dessa sociedade” (“A afinação do mundo”, p.23)
“(...) ainda que os sons fundamentais nem sempre possam ser ouvidos conscientemente, o fato de eles estarem ubiquamente ali sugere a possibilidade de uma influência profunda e penetrante em nosso comportamento e estados de espírito. Os sons fundamentais de um determinado espaço são importantes porque nos ajudam a delinear o caráter dos homens que vivem no meio deles." (“A afinação do mundo”, p.26)
A música em Rohmer é o silêncio,
e como tem sido dito sobre a música silenciosa desde a obra 4’33” de Cage, o
silêncio da música faz os sons do cotidiano falarem, os traz do “desprestígio”
do cotidiano para o altar da música, colocando-lhes a moldura da obra
artística.
E em Rohmer ocorre uma espécie de
“transmutação”/empréstimo desse conceito para dentro do próprio cinema, ou
melhor, de suas histórias. Pois, como já dissemos, o silêncio da música em sua
obra é proposital para que se enfatize o perfil psicológico de seus
personagens, para eles venham a tona sem nenhuma antecipação ou complementação
que a música (extradiegética) poderia vir a prover.
FILMES E MÚSICAS
Na produção de Rohmer se destacam
três ciclos de obras que, juntas, formam a maior parte de seus filmes:
- Seis Contos Morais
1.
A padeira do bairro
2.
A carreira de Suzanne
3.
A colecionadora
4.
Uma noite na casa de Maud
5.
O joelho de Claire
6.
Amor à tarde
- Comédias e Provérbios
1.
A esposa do aviador
2.
Um casamento perfeito
3.
Pauline na praia
4.
Noites de lua cheia
5.
O raio verde
6.
O amigo de minha amiga
- Contos das Quatro Estações
1.
Conto de primavera
2.
Conto de inverno
3.
Conto de verão
4.
Conto de outono
Apresentamos abaixo breves comentários
sobre o uso da música em alguns filmes destas séries e em outras obras avulsas
do autor.
O SIGNO DO LEÃO
Angustiante, tenso, denso,
lembrando algo do Realismo Poético francês da década de 1930 ou mesmo o Neo-Realismo
italiano.
Rohmer nos coloca diante de um personagem
com dificuldades financeiras, perambulando pela cidade, aflito, em busca de se
manter.
É uma obra diferente da maioria
dos filmes que fizeram Rohmer conhecido, tanto pelo perfil da história quanto
pelo uso da música. É um grande filme, sendo notório como o diretor acompanha extensamente
a progressiva perda de eixo do personagem, seu perambular pelas ruas, mostrando
detalhadamente as situações que enfrenta e nos apresentando, por consequência,
a angústia crescente pela qual ele passa. Tudo isso faz a história bastante
convincente.
Aqui vemos a temática do silêncio
e da solidão longamente retratados por Rohmer: solidão, vergonha, fome,
invisibilidade, o diretor nos faz sentir o dia-a-dia de um excluído, com seus delírios,
monólogos e a paulatina queda no alcoolismo.
Um drama de profunda
sensibilidade e atual ainda em nossos dias.
A única música extradiegética
tocada no filme é a composição do personagem principal, sua Sonata para violino
solo, que, além do início, o acompanha em sua perambulação pela cidade, sem
dinheiro e sem esperança.
Bastante expressivo seu uso, pois
funciona como um leitmotiv para o personagem, expressando sua condição tanto
pelo caráter solo da obra que evoca a solidão na qual o personagem se prostra
quanto por sua harmonia atonal, a qual expressa sua progressiva desagregação
interna e falta de rumo na vida. Bela ressonância entre personagem e música,
pois a característica da harmonia atonal é não ter um centro tonal, ou seja,
uma nota que sirva de referência, de repouso para a música, como ocorre na
música modal e mais fortemente na música tonal.
Por mais
que haja música extradiegética no filme, no fundo aqui já aparece uma
característica que perpassará toda a obra desse diretor: em Rohmer nenhuma música
é trazida do lado de fora.
Em sua produção tudo tem que
refletir a realidade. Rohmer busca a autenticidade.
Mesmo as raras músicas que são veiculadas
de forma extradiegética em seus filmes apresentam alguma ligação com algo que
ocorreu (musicalmente ou não) ao longo da história. Ou seja, elas não estão “de
fora”, pois estão ligadas intimamente com a trama. Nada é gratuito em Rohmer.
A PADEIRA DO BAIRRO
Apesar de curta, nesta obra, a
primeira da série “Seis Contos Morais”, já aparecem as características típicas
de Rohmer: personagem com seus conflitos internos, “atrapalhado”, narrador
fazendo descrições principalmente no início, monólogos, diálogos e mudanças
repentinas sobrevindas por lances do acaso que ocasionam um final rápido e
inesperado.
Nenhuma música ao longo de todo o
filme, tendo a paisagem sonora um papel de intensificação da trama.
A CARREIRA DE SUZANNE
Neste segundo filme da série
novamente não há nenhuma música e o final não apresenta grande impacto e acontece
de maneira rápida.
A COLECIONADORA
Mais um filme sem nenhuma música,
firmado sobre a paisagem sonora e os diálogos.
O final, novamente repentino,
acelerado, inesperado, porém não enérgico, confirmando o perfil da história,
com a colecionadora seguindo seu caminho imperturbável, cíclica e continuamente.
MINHA NOITE COM ELA
Este delicioso filme é um marco
na carreira de Rohmer, tendo trazido finalmente o merecido reconhecimento tanto
de crítica como de público para o diretor.
A maior parte da produção deste
diretor mantém uma mesma linha, com enredos, personagens e cenários semelhantes
entre si, o que, de certa forma pode dar a um espectador ainda desacostumado a
falsa impressão de estar sempre assistindo, mais ou menos, o mesmo filme sob diferentes
roupagens. É algo que comumente também ocorre no mundo da música,
particularmente em relação a compositores que trabalham com improvisação. Obras
diferentes, por vezes, podem confundir ouvintes inexperientes e trazer-lhes a
ilusão de estarem ouvindo a mesma obra com relação a músicas diferentes.
Exemplos disso podem acontecer com a obra de Vivaldi, o qual, como muitos de
seu período, escreveram um grande número de obras que trabalhavam com a
improvisação; outro exemplo é o jazz, mestres como John Coltrane, dado o tipo
de improvisação que usava pode passar a mesma impressão; igualmente na música
erudita contemporânea de compositores que trabalham com a improvisação como
elemento composicional, algo de uma composição pode “ressoar” em outra obra e
supor a possibilidade da primeira estar sendo “repetida” na segunda.
Ainda assim, há alguns filmes de
Eric Rohmer que se sobressaem e parecem trazer em si uma síntese dos elementos
que constituem o todo de sua obra. “Minha noite com ela” é o primeiro de seus
filmes a trazer tal característica.
Encontramos nessa história um personagem
“desajeitado”, tímido, que acaba estando com duas mulheres no mesmo dia. Estabelece-se
aqui a característica rohmeriana de personagens defensivos e com
idiossincrasias psicológicas marcantes.
Outra característica fundamental
de sua obra, o imperativo da dúvida permeando o personagem principal e também o
acaso e encontros fortuitos definindo o destino dos personagens.
Diálogos e cenas que fazem do
cinema algo inesquecível!
Rohmer nos apresenta discussões
em torno da fé e da razão que nos levam, junto com seus protagonistas, a
encontrarmos sentidos do viver.
Uma história fluida,
apresentando-nos discussões conceituais (longa reflexão a respeito de Pascal),
personagem com conflitos, virada repentina na história por conta de lances do
destino
Minha noite com ela é um filme que
nos fazer sonhar e suscita o desejo de querer ficar lá, no mundo intemporal dos
sonhos.
Aqui Rohmer se faz o mestre que,
em outros filmes, particularmente em Conto de Verão, se consagraria
definitivamente.
A única música presente no filme
é a da missa.
O JOELHO DE CLAIRE
Outro filme notório em sua
produção, conta a história do reencontro de dois antigos amigos, Jerôme e
Aurora e das peripécias que advém desse reencontro.
O motor da história é a proposição
de Aurora, escritora, de desenvolver uma idéia que ela já tinha sobre um
romance entre um personagem que seria conduzido por seu amigo e uma adolescente
que se apaixona por ele.
Como sempre, ricos diálogos,
divagações, manias e idiossincrasias dos personagens dão o tom do transcorrer
dos fatos e mudanças repentinas que conduzem os rumos de suas vidas.
Os únicos sons ouvidos, além daqueles
provenientes dos diálogos, são os da linda paisagem que serve de fundo para a
história.
A ESPOSA DO AVIADOR
Em 1980 Rohmer dá início a uma
nova série, “Comédias e Provérbios”. Cada longa metragem desta série se baseia
em um provérbio, em torno do qual a história se constitui.
Neste primeiro filme da série, o
diretor retrata as idiossincrasias de um jovem apaixonado e ferido em seu amor,
andando por Paris, em apenas um dia de sua vida, sem dormir, movido por seu
ciúme.
Nesta obra Rohmer nos fornece uma
pequena exceção quanto a seu uso da música: aparece no final do filme, como
música extradiegética, uma canção. Porém, ela havia sido cantada pela
personagem Lucie e depois assobiada pelo namorado desta, sendo assim, quase
apenas uma recapitulação de algo que já estava no universo dos personagens.
Como já enfatizamos, nada neste mestre é gratuito, nada é “de fora”, tudo está
perfeitamente amarrado à história. Mesmo música extradiegética, em sua obra
acaba tendo algo de intradiegética.
Esta canção se chama “Paris m’a
séduit” e sua letra e música foram compostas pelo próprio Rohmer.
UM CASAMENTO PERFEITO
No segundo filme da série
encontramos uma personagem “complicada”, ao estilo predominante de uma de suas
atrizes preferidas, Beatrice Romand, que não assume suas atitudes, emotiva e
capaz de arroubos sentimentais (intensamente rohmeriana!)
Além da paisagem sonora, ouvimos música
apenas na festa.
O RAIO VERDE
Em mais uma deliciosa história
envolvendo personagens indecisos, cheios de contradições e sutis
idiossincrasias, cujas vidas acabam sendo traçadas por acontecimentos do acaso,
encontramos Delphine, uma moça tímida, angustiada pela solidão, que nos é
mostrada em suas andanças em busca de aproveitar suas férias de verão.
Neste filme também prevalece a
paisagem sonora dos cenários. Porém, aqui Rohmer faz uma deliciosa concessão ao
seu estilo introduzindo um leitmotiv
(motivo musical condutor que representa, neste caso, a busca da personagem pelo
raio verde) que aparecerá em cenas importantes do desenvolvimento da trama.
O uso do leitmotiv neste filme se
constitui num riquíssimo artifício que concede uma grande profundidade
artística a este que é o quinto filme da série “Comédias e Provérbios”.
A primeira aparição do tema do
violino se dá quando Delphine encontra uma carta de baralho (uma dama de
espadas) verde caída na rua.
É notável o poder expressivo da
cena. Até então tudo que ouvimos é a paisagem sonora, ou seja, sons do ambiente
e silêncios. Repentinamente, nossos ouvidos são sobressaltados por uma marcante
figura musical (trecho de melodia) tocada por um violino solo.
O contraste som/silêncio é
nítido. É muito mais expressivo e marcante que uma música que aparece em meio a
um filme que é recheado de música. O poder de nos mover é muito maior, pois
somos sensíveis ao que é diferente, ao que contrasta com o cenário que já
ouvimos comumente.
Este é um recurso que, de formas
variadas, tem sido usado desde os primórdios da história de nossa música: o
recurso do contraste, do elemento novo em contraposição ao que o ouvido já está
acostumado, como forma de despertar interesse e chamar a atenção do ouvinte.
O tema do violino novamente surge
quando ela passa por um cartaz, afixado numa parede, que fala sobre terapia. O
cartaz também é verde.
A personagem fala das
coincidências de encontrar cartas no meio da rua e da prevalência da cor verde
nesses achados.
O leitmotiv aparece pela terceira
vez com a carta do valete de copas encontrada na praia em Biarritz.
Logo em seguida Delphine passa
por um grupo de pessoas que contam sobre o romance “O Raio Verde”, de Júlio
Verne, história na qual a personagem buscava ver o raio verde para poder
decifrar seus próprios sentimentos e das demais pessoas, podendo, assim,
encontrar seu amor verdadeiro. Contam que é possível ver o raro raio verde em
um fim de tarde com condições atmosféricas favoráveis.
Ela conhece, por acaso um rapaz
na rodoviária de Biarritz.
O tema do violino pela quarta vez
quando ela avista a loja de artigos chamada Raio Verde, na praia de Saint-Jean
de la Luz.
E finalmente o leitmotiv é tocado
integralmente quando ela vê o raio verde
Essa constituição
da história baseada na música, com o aparecimento pontual do leitmotiv, fornece
uma solidez e engrandecimento para a história que é notável. A trama vai se
constituindo em dois planos: o da história propriamente dita, na superfície, e
em um nível mais profundo, com a música. E tudo conflui no final, com a
personagem vendo o raio verde enquanto o motivo musical finalmente é tocado
integralmente, após ser paulatinamente apresentado e “construído” ao longo do
filme. É o cinema dialogando com a ópera.
Indubitavelmente
uma das maiores obras do mestre Rohmer.
AS 4 AVENTURAS DE REINETTE E MIRABELLE
Neste filme de 1987, que não é pertencente
a nenhuma das séries, não ouvimos nenhuma música ao longo de todas as quatro
histórias.
No entanto, reflexões sobre o
silêncio aparecem na primeira e na última aventuras.
A primeira história, a “A hora
azul”, trata do fenômeno descrito pela personagem Reinette como o momento
fugidio próximo ao amanhecer, quando os pássaros da madrugada param de cantar e
os da manhã ainda não começaram a emitir sons; momento de silêncio “absoluto”.
Reinette enaltece o fenômeno,
dizendo que, se um dia o mundo acabar, será nesse momento, quando a natureza
silencia.
CONTO DE PRIMAVERA
Na década de 1990, já na casa dos
setenta anos, Rohmer cria a sua última série: “Contos das Quatro Estações”.
Nesta primeira obra da série a ocorrência de música
intradiegética nos fornece mais um magnífico exemplo de como o uso parcimonioso
da música acaba valorizando-a mais, pois, como a música aparece apenas nas
poucas vezes em que a personagem Natasha toca o piano, ela acaba tendo um
destaque maior do que em uma obra na qual um tema (extradiegético) é tocado
recorrentemente.
Semelhante ao uso do silêncio em
música, pois em obras em que há bastante silêncio a ocorrência de sons vem
adicionada de intensidade e interesse, muito mais pela qualidade do som em si
do que por sua significância semântica relativa no interior da obra, como seria
em uma composição em que os sons prevalecem do início ao fim.
Chama a atenção o impressionante
diálogo durante o jantar no apartamento de Natasha, no qual Jeanne, professora
de filosofia, e Eve, mestranda de filosofia, debatem sobre o ensino da
disciplina na escola comum em que a Jeanne leciona e como os alunos valorizam o
aprendizado da matéria.
Ouvimos a Sonata nº5 para piano e
violino, de Beethoven, como música extradiegética no início e no fim do filme,
mas também assobiada por Jeanne próximo ao final da história, mais uma vez
ressoando a prática recorrente na obra deste autor de não usar elementos “gratuitos”,
que não tenham uma ligação com a história.
CONTO DE INVERNO
No segundo conto ouvimos música
extradiegética no início, mas que, como tudo em Rohmer, não é gratuita, pois
ela é uma antecipação da melodia que será tocada na cena da peça de teatro
“Conto de Inverno”, de Shakespeare, a qual funciona como uma “inspiração” para
o filme.
Desta forma, a música no início
funciona como um leitmotiv, evocando a peça do autor inglês, cuja cena trata do
poder da fé de realizar até mesmo o que é inverossímil.
E, justamente, a história – como
é recorrente em Rohmer – se resolve (talvez a melhor definição não seja
“resolver”, pois as histórias deste cineasta têm algo de circular, não
apresentando finais triviais) a partir de um acontecimento do acaso, nada mais
coerente do que uma história centrada numa personagem que vive ilogicamente e
passa a acreditar na esperança.
Assim, a música no início não é
fortuita, ela remete a algo estrutural no filme. Rohmer sobrepõe a introdução e
a resolução (evocada pela música) no mesmo trecho. O que, no entanto, só é
possível de se perceber posteriormente, olhando retrospectivamente após o
final. Pois, quando o filme se inicia com a música para piano, onipresente, a
primeira impressão é de que o filme irá quebrar com o hábito comum de Rohmer,
de não ter música extradiegética.
Apenas uma impressão. No fim,
compreendemos que o mestre constrói um jogo retórico na obra. Ele provoca nossa
expectativa, mas nos ilude. Ao final do filme somos obrigados a reconstituir o
que havíamos sido levados a supor que seria o desenvolvimento do filme.
CONTO DE VERÃO
Rohmer já
tinha 76 anos quando concebeu este que é o terceiro longa metragem da série
“Contos das Quatro Estações”, em 1996. E
é aqui, nesta obra prima que o mestre dos diálogos parece alcançar a perfeição
de seu cinema, amalgamando os principais elementos pelos quais seu original
estilo de fazer cinema ficou conhecido: diálogos longos, minimalismo, reflexões
sobre o viver, as complicações do amor, dúvidas e idiossincrasias humanas que
perpassam o cotidiano de cada um de seus personagens, discussões filosóficas,
personagens jovens, de classe média e intelectualizados, situações do acaso que
acabam repentinamente sendo decisivas nas histórias de vida desses personagens.
Tudo isto amarrado com uma tal
mestria que a história se passa de uma maneira leve, doce e encantadora que nos
transporta suavemente ao longo de todo o filme, dando um aspecto final de
agradabilidade e leveza, como num descompromissado romance de verão.
A história apresenta as breves
férias de Gaspard, no balneário francês de Dinard, na Bretanha, e seu romance
com três garotas diferentes: Margot, Solene e Lena.
São inesquecíveis as longas
caminhadas acompanhadas de extensos, ricos e deliciosos diálogos entre Gaspard e
Margot (o que Linklater copiaria para “Antes do Amanhecer” e “Antes do
pôr-do-sol”).
Embora Rohmer mantenha aqui seu
estilo quanto ao uso da música, restringindo a presença de música
extradiegética apenas brevemente no início e no fim do filme, ele reserva para
essa arte um papel diferenciado nesta obra.
A música, seja presente na cena
(e somente na cena, ou seja, intradiegética, como sempre em Rohmer) ou sendo
assunto dos diálogos, assume papel de primeira importância nesta notável
produção do cinema.
Gaspard é um compositor amador de
rock e seu contato com a música perpassa toda a história, aparecendo já no
início com seu violão, depois tocando, compondo, cantando ou falando sobre
música com os demais personagens.
Depois ouvimos Gaspard e Margot cantando
uma canção de rock no caminho até a residência do marinheiro que daria uma
entrevista a ela. Na entrevista o marinheiro fala sobre o uso da música entre
seus antigos companheiros de profissão, cantando, ao final da entrevista, uma
canção de sua época de trabalho.
Seguem novas cenas de Gaspard
continuando a composição de sua canção, passo a passo.
A riqueza da música intradiegética
do filme ainda traz uma cena de música na boate.
No entanto, a passagem mais
bonita se dará com sua relação com Solene. Gaspard apresenta a música a ela que
se interessa e revela que sabe cantar e conhece música. Segue a cena com os
dois ensaiando, ela cantando a melodia.
E, finalmente, a memorável cena
deles cantando a canção de Gaspard no barco, acompanhados pelo acordeonista e os
tios da moça. Uma cena marcante, com uma linda imagem na qual o vemos os
cabelos de Solene ao vento enquanto ela, altissonante, entoa a canção.
O filme termina com a canção que
remete à personagem Margot, de maneira extradiegética, mas, que, no entanto,
havia sido cantada pela personagem Lena ao longo da história.
Conto de
Verão é um dos filmes centrais na produção de Rohmer. Junto com Minha noite com
ela e Raio Verde, é uma feliz amálgama das características pelas quais esse
autor se notabilizou e que fazem dele um diretor único no mundo do cinema.
E, talvez
até mais que nos outros, aqui aparece no mais alto grau a marca da mestria de
um autor já bastante experiente que, no auge de sua produção, decide mais uma
vez falar sobre a juventude. Diferentemente de outros autores que na maturidade
plena se sentem mais aptos a abordarem temas supostamente mais complexos,
usando o peso da idade, de quem já viu e viveu muitas coisas e pode falar delas
melhor que os mais jovens (como, por exemplo, sobre a velhice), Rohmer mais uma
vez aborda a juventude.
Sorte
nossa! Pois ele trata o tema como ninguém. Faz uma obra prima que, se no nível
de superfície parece um filme leve, agradável, sem muitas exigências ao
espectador e que pode ser assistido sem grandes cobranças de concentração ou
recursos intelectuais, por outro lado, se nos debruçarmos mais atentamente, não
faltam temas para serem debatidos, esmiuçados e esgarçados que enriquecem nossa
experiência de vida, tal como indagações filosóficas, questões antropológicas,
artísticas e culturais em geral, sem falar da habilidade de tratar do tão
batido tema das relações humanas (amorosas ou não) sem que se caia na trivialidade.
O grade
mérito do filme é essa capacidade de construir uma história bastante
imaginativa e rica, trazendo de forma velada, temas de maior complexidade, tendo
tudo isto amarrado sob uma aparência de leveza e ingenuidade, sem que se caia
no pedantismo ou na banalidade. Somente o pleno domínio do métier, aliado a uma
larga experiência para conseguir tão perfeito equilíbrio.
E é este um
dos marcos distintores de um grande artista: a capacidade de criar obras que
possam ser fruídas por pessoas de diversas origens, idades, classes ou
interesses culturais, sem que se perca o interesse para nenhuma delas.
CONTO DE OUTONO
No último dos “Contos das Quatro
Estações” a única música presente em todo o filme vem ao final, com a música ao
vivo na festa.
Chama a atenção a paisagem sonora do campo
preenchendo intensamente o espectro sonoro.
Como já
referido anteriormente, neste filme Rohmer constrói uma interessantíssima
parceria de atuação entre suas duas atrizes preferidas: Marie Rivière e
Beatrice Romand.
É mais uma
grande obra deste cineasta, retratando brilhantemente a dificuldade das
relações amorosas na meia-idade (outono).
ROHMER....
Contrastes entre superficial e profundo, som e silêncio, intenção e ação.
As suas histórias que, apesar de sua leveza e
fluência, nos revelam profundos questionamentos sobre a vida e a sociedade.
Os seus diálogos que, no fundo, são
apenas um artifício para se chegar ao íntimo de seus personagens.
O aspecto superficial de conformista
que no fundo traz uma obra profundamente crítica.
A prevalência do irracional em uma
sociedade auto declarada como racional.
Personagens que falam uma coisa e
fazem outra.
E a escassez de música em seus
filmes que, ao invés de ser um descrédito ao poder da música é, de fato, o
contrário. Ele nos remete a uma profunda reflexão sobre o uso do silêncio, que
tem sido um importante elemento na música contemporânea ocidental erudita desde
a década de 1950, pelo menos. Assistindo seus filmes somos tocados pelo poder
da música. Ela está quase sempre ausente de suas obras justamente por causa de
seu poder de mover a psique humana, pois se ele a usasse mais ela estragaria,
com seu poder, aquilo que é um dos efeitos desejados por Rohmer: a surpresa.
![]() |
"O joelho de Claire". Fonte: Les Films du Losange |
TEXTOS RELACIONADOS
Ondas
Martenot: um instrumento eletrônico na orquestra
Inovação e tradição na música na música erudita ocidental
dos séculos XX e XXI
REFERÊNCIAS
Dicionário Grove
de Música – edição concisa
editado por Stanley Sadie
ZAHAR
A afinação do
mundo
R. Murray Schafer
UNESP
A obra de arte na
era de sua reprodutibilidade técnica
(Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura)
Walter Benjamin
BRASILIENSE
Foi-se Eric
Rohmer, o cineasta das palavras
André Barcinski
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1201201022.htm
Eric Rohmer for beginners
http://www.bfi.org.uk/news-opinion/news-bfi/features/eric-rohmer-beginners
Eric Rohmer - Biography
https://www.imdb.com/name/nm0006445/bio?ref_=nm_ov_bio_sm
PERSONAGENS E CONCEITOS
Ferruccio Busoni
compositor e pianista
ítalo-germânico (1866-1924). Sua obra cambia entre as propostas mais atuais de
sua época e um gosto clássico tradicionalista. Sua obra teórica “Esboço de uma
nova estética da música”, de 1907, enaltece uma música do futuro com o emprego
de microtons e meios eletrônicos.
Luigi Russolo
compositor e pintor italiano
(1885-1947), adepto do movimento futurista, entusiasta das transformações
tecnológicas que se processavam em seu tempo, propunha uma música que quebrasse
os elos com o passado e que refletisse o ruído das máquinas que já povoavam a
paisagem sonora da época.
Música Eletroacústica
vertente musical originada da fusão
entre a Música Concreta francesa e a Música Eletrônica alemã durante os anos de
1950, é baseada na criação a partir de sons gravados e posteriormente
transformados – atualmente por meio dos computadores e com o apoio das
tecnologias digitais – e/ou por sons sintetizados. Tem o alto falante como item
essencial, podendo, como é o caso da “música acusmática” (uma das vertentes
desse tipo de música) ser executada sem a participação de nenhum intérprete no
palco, como na tradição da música “acústica” (não-eletroacústica, realizada com
os instrumentos tradicionais). O compositor desse tipo de música consegue
trabalhar com sons totalmente inauditos em relação à prática tradicional, já
que o trabalho em estúdio (utilização de softwares de transformação para
captação, síntese, transformação e edição de sons) permite que ele se
transforme num “moldador”/”escultor” de sons.
Edgar Varèse
compositor de nascimento francês
(1883-1965), mas que passou a maior parte de seu período produtivo nos EUA.
Desde suas primeiras obras já aponta para novos caminhos na música, trabalhando
com enfoque em novos timbres e com formas que rompem definitivamente com a
tradição que outros inovadores mais aclamados em seu tempo ainda tinham
dificuldade em deixar para trás. Ionisation
é um marco na música ocidental como a primeira obra escrita apenas para
instrumentos de percussão. É um dos precursores da música eletroacústica.
leitmotiv
(motivo condutor) Tema ou idéia
musical claramente definido, representando ou simbolizando uma pessoa, objeto,
idéia, etc., que retorna na forma original, ou em forma alterada, nos momentos
adequados, numa obra dramática (principalmente operística).
Comentários
Postar um comentário