"De olhos bem fechados": de ouvidos bem abertos para a música de Stanley Kubrick

            Stanley Kubrick (1928-1999), considerado por muitos como um dos mais importantes cineastas da história, concedeu significativo destaque para a música em seus filmes: “2001 – Uma odisseia no espaço”, “Barry Lyndon”, “O iluminado” e “De olhos bem fechados” são, entre outras, obras nas quais esse diretor construiu uma narrativa cinematográfica intrinsecamente ligada à música escolhida.
            A principal característica do uso da música por Kubrick é a escolha meticulosa das composições para cada filme. Diferentemente de cineastas como Alfred Hitchcock (que, neste campo, estabeleceu uma memorável parceria com o compositor Bernard Herman) que procuram trabalhar com obras originais, compostas “organicamente” com a produção do filme, numa relação direta cineasta-compositor, Kubrick é mais aparentado com Ingmar Bergman, trabalhando com obras selecionadas do repertório erudito (e também com canções de origem pop), procurando trazer para os filmes obras que contenham características que corroborem suas idéias pré-concebidas.
            Meticuloso e perfeccionista, este cineasta estadunidense tem em seu catálogo “apenas” treze longa metragens que, no entanto, alguns deles estão entre as grandes obras da arte cinematográfica  (na música temos um perfil semelhante na figura de Henri Dutilleux, compositor francês, perfeccionista que, a despeito de sua longevidade – 97 anos – e de sua notoriedade na música do século XX, manteve em seu catálogo relativamente poucas obras meticulosamente elaboradas). Seus filmes são obras de arte extremamente elaboradas nas quais não há cenas “gratuitas”, tudo é profundamente pensado e arquitetado de forma orgânica, revelando uma profunda inteligência e erudição por parte de quem concebeu a criação de tais obras.
            “De olhos bem fechados” (“Eyes wide shut”) é seu último filme, lançado no ano de 1999. Nessa obra aparecem com destaque duas características marcantes da filmografia de Kubrick: os estranhamentos (pequenos desvios) em meio a um discurso tradicional e a música com papel expressivo e estruturante na obra.
A ênfase nos gestos dos personagens como elementos (ornamentos) de estranhamento é um recurso recorrente em Kubrick, particularmente em “Laranja Mecânica” e em “O iluminado”.
No primeiro filme os personagens apresentam trejeitos, caretas, gestos grotescos que se chocam com o restante da trama, mas que adquirem força expressiva no enredo do longa (algo com uma certa, embora distante, semelhança aos ornamentos expressivos na música, principalmente na música barroca).
            Já em “O iluminado” – aventura de Kubrick no gênero de terror, gênero este que, se hoje está banalizado, naqueles tempos (1980) ainda tinha bastante frescor e, não ocasionalmente, fora campo de atuação de grandes nomes que até hoje são referência na direção cinematográfica, como Roman Polanski – os gestos grotescos abundam, mas desta vez bem situados na loucura do personagem principal (não funcionam como estranhamentos no enredo).
Em seu derradeiro filme os gestos característicos reaparecem (embora muito menos intensos que nesses outros filmes de Kubrick), como quando Alice dança, já embriagada, com o húngaro que tenta seduzí-la e depois, mais intensamente, nos trejeitos característicos do dono da loja de fantasias. É uma característica marcante do cinema de Kubrick

Fonte: https://www.warnerbros.com/eyes-wide-shut#


Simbiose

            A música em “De olhos bem fechados” está amparada principalmente em duas obras: a Valsa nº2 da Jazz Suite, de Dmitri Shostakovich e a Musica Ricercata nº2, de Gyorgy Ligeti.
Kubrick integra essas duas obras no filme de forma tão orgânica que elas acabam parecendo que foram compostas para ele ou que o filme foi criado a partir de insights tirados delas.
            Ele já fizera isso antes, principalmente no clássico “2001: uma odisseia no espaço” e em “O iluminado”.
            Em “2001: uma odisseia no espaço” figuram como marco a abertura de “Also Sprach Zarathustra” (Assim falava Zarathustra), poema sinfônico de Richard Strauss, algumas obras (recentes na época) de Gyorgy Ligeti, Aaram Khatchaturian e a valsa Danúbio Azul de Johann Strauss. Cada uma delas tão amarradas à trama do filme que tornam-se parte inseparável dele, seja no anúncio de uma nova era com que o diretor faz do poema sinfônico do compositor alemão, seja na harmoniosa dança sideral encetada pela valsa vienense ou pela supressão do tempo marcado proveniente das grandiosas obras de Ligeti, um dos titãs da música do século XX.
            Em “O iluminado” a música – particularmente de Béla Bartók, outro grande nome da música do século XX – é parte inseparável da constituição da loucura de Jack Torrance, completando e amplificando o terror sugerido pelas imagens. Nessa obra que beira o surrealismo, assim como música, imagens e ambiência estão amalgamadas, também não é possível separar o que faz parte da loucura do personagem Jack Torrance e o que é realmente sobrenatural no hotel, principalmente quando Wendy começa a ver o que parecia apenas alucinação para Jack ou as visões do poder especial do filho Danny, “iluminado”.
            Uso uma metáfora que considero bem ilustrativa da maneira pela qual Kubrick trata a música em seus filmes. Me faz lembrar ruínas de construções humanas que, depois de muito tempo abandonadas sem ação do homem, a natureza se reconstrói em meio a elas de tal forma que as características humanas vão se perdendo e aquelas construções vão sendo integradas ao ecossistema. Exemplos bastante apropriados para essa metáfora são aquelas construções abandonadas em meio a uma mata cujas fauna e flora locais invadem, adaptam e se apropriam do que antes fora humano.
            É isso que Stanley Kubrick realiza com as obras musicais que ele integra a seus filmes. Ele amalgama de tal forma suas imagens a essas composições que elas passam a ser integradas e a integrarem o todo de seus filmes como obras de arte totais e com tal poder de amálgama que fica difícil separá-las posteriormente de suas imagens. O maior exemplo disto é certamente o prelúdio do poema sinfônico “Also Sprach Zarathustra”, do compositor alemão Richard Strauss, inspirado na obra filosófica homônima de Friedrich Nietzsche, que o diretor emprega em “2001: uma odisseia no espaço”. Após ter assistido o filme (e com todas as vinculações que essa música recebeu, relacionada aos significados colocados por Kubrick, ao longo desse meio século) fica difícil ouvir tal música apenas pelas implicações que Richard Strauss colocou na obra, sem trazer todas as associações que o filme nos proporcionou.
            Ou seja, aqui podemos reconhecer que os significados e sentidos de uma obra vão muito além da poiesis (da criação), assumindo maior amplidão no mundo em que ela está inserida, na cultura. Esse prelúdio já não é apenas de Richard Strauss, mas também de Stanley Kubrick (e de todos nós, pois a arte se completa naquele que a contempla).
            Que esta breve análise sirva como meu elogio a essa grande obra, pois neste ano de 2018 completam-se 50 anos desde que “2001: uma odisseia no espaço” foi lançado, naquele distante ano de 1968.


Estabilidade

            Voltemos, então, ao assunto deste texto.
            “De olhos bem fechados” apresenta a música como elemento estrutural do filme, perpassando a história e a constituição da trama.
            Logo na abertura ouvimos a valsa de Shostakovich (que, curiosamente, não está entre as obras mais conhecidas deste compositor). Essa música aparecerá mais duas vezes ao longo do filme, estando também no encerramento do mesmo.
            É uma música emblemática para o filme, trazendo em si uma síntese do que essa obra cinematográfica representa. Por ser uma valsa, traz em si o caráter dançante, fluente, elegante e aristocrático, características que amalgamam elementos musicais e sociológicos, que esse tipo de música adquiriu ao longo da história da música e que se moldam perfeitamente ao cenário e aos personagens que o diretor nos apresenta já de princípio. Não obstante, ainda que apresente traços fundamentais que inconfundivelmente a representem como uma valsa, essa música traz alguns elementos de estranhamento na orquestração. Mais uma vez, é perfeitamente apropriada para o enredo desta obra cinematográfica, a qual também se encaixa num perfil de história “esperado” para uma produção de massa, mas que contém elementos de estranhamento ao longo do desenvolver da história, chegando a lembrar (bem vagamente) o realismo fantástico ou o surrealismo. Em mais uma semelhança com a música, é como um discurso tonal que apresenta certos desvios em relação ao que é comumente esperado, com a valsa representando na estrutura do filme o elemento de estabilidade, de repouso, apresentada no início e no fim, assim como na música é a tonalidade principal (o dó maior, ré maior, mi menor, etc, que é ouvido no início e no fim de uma obra tonal).
            Música tonal, resumidamente, se refere uma maneira de se organizar os materiais musicais de forma a se estabelecer uma relação fortemente hierárquica em torno de uma nota principal. Tem raízes no final da Ars Nova e no Renascimento e se firma definitivamente no final do período Barroco, não meramente coincidente temporalmente com a afirmação da teoria da gravitação dos planetas, baseada no eminente astrônomo Johannes Kepler. O sistema tonal se firmará na época do Iluminismo, cujas idéias, inundando também a cabeça dos músicos e instigando-os a buscarem realizar na música os ideais de um mundo baseado na razão (o que, para a música, foi imensamente empobrecedor!), leva-os a buscarem formas claras e harmonias simplificadas. Esse sistema de organização dos sons musicais no mundo ocidental prevalecerá como dominante na música de invenção ao longo dos dois períodos seguintes, no Classicismo (segunda metade do século XVIII) e no Romantismo (século XIX). Anacronicamente ainda prevalece em nossos dias na paupérrima música da indústria cultural (e, por isto, ainda fortemente incutido em nossa percepção musical, esteja a pessoa consciente ou não disso) e na insistência de alguns setores do mundo musical na música dos “clássicos”. A tonalidade se ampara no uso de duas escalas de base – a maior e a menor – criando um discurso sonoro de alternância entre afastamento harmônico da região da nota principal (gerando tensão e desejo de resolução dessa tensão) e retorno à região da nota principal (proporcionando repouso, resolução das tensões), assim como nas histórias mais tradicionais em que se apresenta um personagem e seu cenário, depois cria-se um problema a ser resolvido e termina-se a história com a resolução desse problema (o largamente empregado “final feliz”). É a esse sistema de organização dos sons em uma obra que se refere quando se fala em uma música que está em “dó maior”, por exemplo. Ele explora, em semelhança com a teoria da gravitação dos planetas, as relações de atração e proximidade entre as notas, como num sistema solar, em que os diversos planetas giram em torno de uma estrela principal.


Fonte: dreamstime.com






            A valsa de Shostakovich aparece, como dissemos antes, na abertura e no final, conforme já sugerimos que ela funciona como o elemento de estabilidade, onde não há tensões significativas na história do filme, ou seja, acompanhando a vida burguesa bem estabelecida do casal. Além dessas duas há uma terceira aparição, logo após a festa na casa de Ziegler, acompanhando cenas do dia-a-dia de Bill e Alice tanto separadamente quanto juntos. Funciona de forma semelhante ao uso que se faz na forma sonata com a reapresentação de um tema na primeira seção, tocando-se novamente a idéia musical principal da obra para certificar-se de que o ouvinte compreendeu que é esse material que será desenvolvido posteriormente na seção central. É uma reafirmação da idéia principal (que equivale ao que as imagens trazem, ou seja, cenas de uma família “bem estabelecida”.
            A forma sonata é a forma (maneira de estruturação e disposição das partes de uma música) mais famosa usada nos períodos clássico e romântico da música erudita, cobrindo da segunda metade do século XVIII até o final do século XIX, ou seja, todo o período em que prevaleceu a tonalidade, descrita anteriormente. É a forma usada para as sonatas escritas para diversos instrumentos (piano, violoncelo, violino, entre outros), para os quartetos de cordas e para as sinfonias, entre outras obras. Resumidamente, a forma sonata é composta de três grandes seções: apresentação/exposição do tema, desenvolvimento e recapitulação do tema.
            “De olhos bem abertos” também está estruturado em um ABA’ (forma baseada em três seções, como a sonata), sendo B, a parte central, bastante ampliada em relação ao A. A’ – a repetição variada da primeira parte – é curta, sendo representada pelo restabelecimento da relação do casal que, nas circunstâncias do filme, é bastante curto, pois remete ao que já fora visto no princípio da história.
            Digno de nota é o fato de que Stanley Kubrick também foca o número três nas três aparições do monólito em “2001: uma odisseia no espaço”.


Desenvolvimento

            Em “Eyes wide shut” o elemento de tensão na estrutura da história é lançado quando o casal está fumando maconha e Alice libera suas angústias ocultas instaurando uma intriga com o marido que vai acabar na confissão dela de que já pensara em abandonar a família e fugir com outro homem. Por outro lado, as imagens já nos induziam a considerar que Alice fora alterada pela conversa picante com o húngaro que a tenta seduzir na festa, fazendo-lhe sugestões de que uma mulher como ela, “que poderia ter qualquer homem que desejasse”, não precisava ficar restrita às “amarras” de um casamento (ou seja, podemos interpretar a cena superficialmente, dizendo que Alice agiu por conta da droga, ou podemos ir mais fundo e considerar que a droga apenas liberou o último entrave de algo que já estava plantado na personagem de Nicole Kidman).
            Nessa altura os estranhamentos e a ambiguidade do maduro métier de Kubrick já deixam sugerido (sem afirmar!) o desejo de Alice procurar novos caminhos, seu tédio com a idéia de um casamento “bem estabelecido”.
            A constatação (ou suposição?) de que a esposa não era fiel como ele imaginava é a alavanca da consternação de Bill Harford.
            Perplexo, imaginando a cena hipotética de sua esposa fazendo sexo com o oficial da marinha que ela menciona na fantasia, Bill sairá pela cidade (e pela noite) seguindo outros caminhos que não mais o do “casamento perfeito” que nos é apresentado no início.
De repente, a vida segura já não parecia tão certa assim (constatação da ilusão que nos vendem continuamente em relação a uma suposta “normalidade”, padrão de vida, o qual está fincado em bases extremamente tênues).
Esse é o elemento que funciona como o estranhamento, o desvio no caminho, que faz Bill ficar atordoado, voltar andando pelas ruas, incerto a respeito do que faria...é o elemento de tensão no filme (dissonância na música tradicional, desvio da região harmônica que caracteriza a nota principal, a tônica).
            O caminhar do filme se dará num processo de estranhamento de seu mundo, seus costumes e o contato com outras realidades.
O médico, andando pelas ruas, é agredido por um grupo de jovens, encontra uma garota de programa e, junto com outras experiências, faz contato com o mundo que comumente só vê pela janela do carro. É um processo de contato com novas experiências, de estranhamentos, constante instabilidade.
É somente depois de caracterizar muito bem esse “desvio” no ambiente inicialmente dado, de nos deixar claro que um distanciamento da ordem inicial foi estabelecido, que Kubrick vai nos apresentar à música de Ligeti.
Extremamente minimalista em seu material, a “Musica Ricercata II” é constituída de apenas três notas que são multiplicadas em diferentes oitavas do piano de forma a construir uma música que, partindo de muito pouco material, alcança uma expressividade muito rica e intensa, em grande parte pelo amplo uso do silêncio em seu interior, elemento este extremamente enriquecedor para a arte musical, conforme já abordamos em um texto anterior.
A maior parte da música está construída sobre uma insistência em mi sustenido e fá sustenido. A nota sol é apresentada posteriormente e, por conta da escassez de material musical, por si só acaba sendo um elemento de contraste quando é tocada. Talvez uma metáfora para a vida do médico Bill Harford, que vive uma vida idílica – bem sucedido profissionalmente, com família bem constituída, casado com uma bela, dedicada e (aparentemente) fiel, esposa – e que estranha quando “sai para a vida”, conhecendo outras realidades que, sem que ele talvez enxergasse antes, estão muito próximas dele.
O diretor emprega essa obra do mestre húngaro como elemento fundamental nessa seção central do longa metragem, intensificando o caráter de instabilidade na estrutura da obra e adicionando elementos de mistério e enigma.
A composição de Ligeti aparece quatro vezes no filme, corporificando o estranhamento produzido pelo ritual orgiástico que o médico presencia e, principalmente, o perigo que tal situação oferece a ele.


A primeira aparição da obra se dá em um momento de muita tensão, na primeira vez em que o chamam para ser inquirido na casa, logo ao entrar na sala em que o aguardam.
A segunda vez ocorre quando ele cancela seus atendimentos, pega o carro e vai até a casa, durante o dia, sendo sinistra e ameaçadoramente contactado no portão fechado.
A mesma música surge pela terceira vez quando Harford é perseguido a distância pelo espião de Ziegler, nas ruas da cidade à noite.
            A quarta ocorrência dessa música é a mais bem arquitetada por Kubrick no filme, demonstrando o poder expressivo que a música pode ter como elemento de construção de uma trama na sétima arte. Agora não mais na mansão, mas na chegada de Harford a sua casa e encontrando a máscara na cama com Alice. A música nos sugere que alguém esteve ou está ali, sem precisar mostrar sua presença física (fora a máscara) – a música participando como complemento das imagens. Ou, numa outra possível interpretação, a qual intensifica o aspecto ambíguo dessa obra cinematográfica, amplificando seu clima de mistério, nos deixando na dúvida se Alice estivera também no ritual orgiástico, corroborando o que seu sonho dizia.
            Essa quarta ocorrência da “Musica Ricercata II” ocorre simultaneamente com a cena de maior ápice de tensão no filme. É o momento que distende ao máximo as questões acumuladas ao longo da história e leva o personagem de Tom Cruise ao seu limite emocional, obrigando-o a se abrir com a esposa sobre o que estava ocorrendo. Daí em diante (“caída a máscara”) o filme caminhará para o seu fim, aparentemente restabelecendo a harmonia entre o casal (embora, obviamente, a vida nunca mais seria a mesma) e culminando com o retorno da valsa de Shostakovich (que não aparecera em nenhum momento de toda essa seção central do filme), após a última cena.


A música como alma do cinema de Kubrick

Em seu gosto pela música, Kubrick nos presenteia com alguns virtuosismos ao longo do filme, como sua habilidosa montagem misturando a música de fundo com o cenário na casa do médico (no início do filme, o que só percebemos quando Harford desliga o aparelho de som, nos causando imediatamente um choque, dando uma impressão de profundidade na obra logo de cara, pois a música que parecia ser uma música de fundo, ou seja, algo que nós, espectadores ouvíamos, na verdade era a música que os personagens estavam ouvindo, coisa que só nos damos conta quando o médico nos desliga de nossa ilusão que Kubrick, habilidosamente nos mostra que está nos pregando uma peça) e depois no apartamento da garota de programa entra uma música indicando que é música do cenário/de fundo, mas o diretor nos confunde, demonstrando que a música está sendo tocada no rádio da casa – inteligentíssimo artifício
A música em Kubrick claramente não se limita a ser um mero adorno ao filme, ela tem papel de destaque também na história. Além de o casal protagonista gostar de arte e de música, assim como sua filha, desde o princípio do longa a música já tem papel de destaque, seja com a “charada” da valsa de Shostakovich sendo tocada no rádio, seja a festa de Natal que o casal vai, promovida por Zieglers, na qual há música ao vivo e Harford reencontra seu antigo  colega da faculdade de medicina, Nick Nightingale,  que agora era pianista profissional.
Igualmente o ponto de viragem da história, o ponto criador de tensão passa pela música, acontecendo quando Harford vai ao clube em que Nick está fazendo uma temporada como pianista. De lá ele partirá para conhecer a sociedade secreta dos submundos da cidade. Digno de nota é que a senha para entrar na próxima reunião do grupo é FIDÉLIO, nome da ópera de Beethoven, na qual a protagonista é uma esposa que entra disfarçada em uma prisão para salvar o marido. Já é um prenúncio do que ocorrerá na mansão, apontando tanto para a relação vaga sobre Alice quanto para a mulher que se sacrifica por Bill.
“Fidélio” é a senha para entrar em uma nova “realidade” dentro do filme, tendo o pianista como ponto de acesso para essa outra realidade (é como se fosse, na música tonal, a nota pivô, que leva a música para uma outra tonalidade – modulação). Em ambos, elementos estruturais da obra, a música também está presente.


Outra passagem interessante na qual percebemos um uso detalhista da música é quando Harford, perseguido na volta pra casa, após receber a notícia que a garota de programa era HIV positivo, é perseguido, para na banca e compra o Washington Post com a notícia “lucky to be alive”. Em seguida entra num café e lê no jornal que a sua protetora na mansão havia morrido por overdose. Nesse momento está tocando, dentro do café, o “Rex Tremendae”, do Requiem de Mozart.


Desta forma, em comparação com o universo musical, poderíamos dizer que esta obra de Kubrick se assemelha às obras neo-tonais do século XX, que buscam usar a velha tonalidade de uma maneira renovada, adicionando maiores liberdades harmônicas, com uso mais livre de dissonâncias, ou seja, que podem adicionar dissonâncias e ainda assim continuarem tonais.


Epílogo

“De olhos bem fechados” é um ”filme da noite”, as cenas durante o dia são poucas, mais pacatas e com importância menor. É uma obra que remete ao mundo dos sonhos (teria David Lynch se inspirado nele para criar “Mulholland Drive” – “Cidade dos sonhos”, no Brasil – pouco depois?). Há uma rica exploração de dualidades, opostos significativos: dia/noite, casamento/não casamento, vida burguesa estabelecida/vida nos submundos de uma grande cidade, mundo de regras/mundo do prazer, obrigações/desejos.
Semelhante ao que ocorre em “O iluminado”, há uma mistura entre mundo dos sonhos e realidade (faz lembrar os quadros de Escher nos quais as situações mudam imperceptivelmente de um estado para outro). A cena mais representativa disso é o momento em que Harford volta pra casa após vir da mansão e escuta Alice contar sobre o pesadelo que teve, no qual aparece uma situação parecida com a que ele acabara de viver na mansão naquela noite.
Em situações que seriam corriqueiras em outros filmes, Kubrick coloca pequenos estranhamentos que funcionam como ornamentos que “temperam” o filme e lhe dão sua distinção.
Os estranhamentos ocorrem tanto em nível superficial quanto em nível intermediário na estrutura do filme. Harford, ao longo da história, vai entrando em contato e ficando perplexo com os estranhamentos que encontra na vida do cotidiano. Além dos já citados, da vida pulsante e “diferente” do mundo das ruas e da noite que o protagonista passa a perceber, há a questão da filha do dono da casa de fantasias , um acontecimento que também se opõe à vida “normal” de Harford, com sua visão tradicional sobre o que é uma família, cuidando de sua filha, enquanto o vendedor de fantasias prostitui a sua.
Kubrick nos apresenta uma história da relação entre um casal que poderia ser a história de muitos outros romances comerciais hollywoodianos, porém, contada de uma outra maneira, com estranhamentos, referências psicológicas, oníricas, um nível muito maior de aprofundamento, enriquecimentos com referências musicais típicos de seu jeito de filmar que, somados, trazem um enriquecimento sem igual para uma história que poderia facilmente ser banal.
            Como discutimos acima, música e enredo estão intimamente associados. Kubrick utiliza a música como elemento de articulação na obra, perpassando toda a sua estruturação.
            Nada parece ser gratuito em uma obra desse diretor. Tudo é bem arquitetado, cada detalhe parece ser pensado como num jogo de xadrez. Ou, talvez ele preferisse...como numa grande composição musical!
Como já defendemos em textos anteriores, uma grande obra de arte deixa mais perguntas em aberto do que respostas fechadas.
Mistério, enigma, lacunas sugestivas, fazem parte de uma grande obra de arte...na arte o que importa é o que poderia ser e não o que é ou parece ser.



            E isto é o que “De olhos bem fechados” nos apresenta: uma grande obra de arte na qual, mesmo que os elementos de superfície muitas vezes nos induzam a pensar que há obviedades, no fundo sempre há lacunas, sugestões, dúvidas, incertezas...mistério!
            É uma obra a qual terminamos de assistí-la e continuamos a pensar nela e no que ela suscita muito tempo depois...sem ter todas as respostas. Stanley Kubrick explora nela as “qualidades enigmáticas dos fenômenos”, possibilitando que a ambiguidade suscite associações no íntimo do espectador, abrindo caminho para uma diversidade de interpretações possíveis.
            Esse é o papel da arte: tirar as certezas e não plantá-las!



TEXTO RELACIONADO



REFERÊNCIAS

Dicionário Grove de Música – edição concisa
editado por Stanley Sadie
ZAHAR


PERSONAGENS

Dmitri Shostakovich

            compositor soviético (1906-1975) que trabalhou com uma linguagem tonal bastante ampliada e oscilando entre seguir os ditames do Realismo Soviético ou trabalhar com as linguagens revolucionárias do ocidente. Suas 15 sinfonias são um dos pontos altos desse gênero no século XX, explicitando em seu caráter um amálgama da dupla tarefa desse compositor, dividido entre suas obrigações e cobranças de caráter político e sua responsabilidade como artista criador de alta performance.

Gyorgy Ligeti

            compositor húngaro (1923-2006) que é um dos protagonistas de uma das mais importantes inovações na música do século XX. Em sua obra “Atmosphères” (usada na trilha sonora de “2001: uma odisseia no espaço”) aparece pela primeira vez a exploração extensiva do timbre, deixando-se de lado os parâmetros mais tradicionais da música (melodia, harmonia tradicional, ritmo), o que veio a ser conhecido mais amplamente como “massas sonoras”, embora o próprio Ligeti denominasse sua técnica como “micropolifonia”, referindo-se ao uso de uma complexa polifonia de muitas partes individuais cujas harmonias fundem-se umas nas outras.

Richard Strauss

            compositor alemão (1864-1949), influenciado pelo pensamento musical  de Wagner e Liszt. Regente de grande importância e, como compositor um dos ícones do Romantismo Tardio, levando, junto com Mahler, a música de raízes alemãs aos limites da tonalidade. Suas obras de maior destaque são seus poemas sinfônicos e suas óperas.

Béla Bartók

            compositor húngaro (1881-1945)  considerado um dos maiores inovadores da música do século XX. Bartók fez um extenso estudo etnomusicológico de várias regiões de seu país e da Europa Central, incorporando tais características em sua própria produção. Por via desse aprendizado, sua música apresenta escalas, melodias e ritmos que diferem da utilização tradicional da música erudita ocidental.

Maurits Cornelis Escher

            artista gráfico holandês (1898-1972)  dono de uma produção original de xilogravuras, litografias e meios-tons. Em suas obras explora amplamente padrões geométricos entrecruzados submetidos a transformações graduais para a construção de cenários impossíveis, beirando o surrealismo.


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