Música e Política: para além do senso comum
Quando se fala na relação entre música e política é comum
que as pessoas pensem imediatamente nas canções de protesto, resistência e
denúncia social. Há um importante histórico de artistas que marcaram gerações
com suas canções retratando momentos difíceis das relações em sociedade. Não
faz muito tempo que a última ditadura no Brasil se desfez (se é que se
desfez...) e os chamados “anos de chumbo” produziram muitos nomes importantes
nesse campo, como Chico Buarque, Geraldo Vandré e muitos outros. O mesmo pode
ser dito para as demais nações latino-americanas que passaram pela mesma situação
no mesmo período. O nome da chilena Violeta Parra é um ícone quando se trata de
tal tema.
Nessas canções o texto (a letra) é o elemento mais importante,
usado para transmitir a mensagem desejada. A música, na maior parte das vezes é
relativamente neutra, tem apenas o papel de servir como veículo para a
expressão de uma idéia política.
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Geraldo Vandré interpretando "Caminhando" no Festival Internacional da Canção, em 1968. Fonte: Ag. O Globo/divulgação |
No entanto, a imbricação desses dois campos vai muito
além do âmbito das canções. Veremos ao longo deste texto exemplos nos quais a
música por si só se constitui como elemento de reflexo e reflexão em questões
de ordem política, chegando mesmo a assumir protagonismo em alguns casos. Pensar
e fazer música podem ser ações de forte impacto político, dependendo do meio,
do período histórico, da cultura, da maneira de se fazer, dos atores envolvidos
e da concepção de música que se tem. E, mesmo quando esse impacto não é
facilmente perceptível, ainda assim o fazer música não está alijado do fazer
política.
No fundo, o ato de fazer música já implica uma atitude
política, pois, se considerarmos que um dos vários significados da palavra
política se refere ao que é público, coletivo, e às tomadas de decisões que
envolvem essa coletividade, então fazer música, que é uma prática social,
também se refere a essa mesma coletividade como algo que dela emana, a
representa e é fruto também de suas escolhas.
A música influencia e é influenciada pelas decisões
coletivas do meio que ela emerge. Talvez seja um pouco difícil perceber isso em
nosso tempo. Estamos imersos em uma sociedade de massas na qual reina a apatia
e na qual a vontade das pessoas, em grande parte, é manipulada pela indústria cultural, que lhes incute
medos e desejos de acordo com o que convém ao mercado e dificulta, assim, a
percepção das pessoas a respeito das conexões entre as coisas. Ou seja, dificulta
a percepção de que a sociedade em que vivemos não está constituída por obra da
natureza ou por vontade divina, ela é uma consequência de ações humanas
historicamente determinadas.
A subjetividade do artista que cria e/ou interpreta
música não é algo tão espontâneo como muitas vezes se diz. A criatividade de um
artista acontece dentro de um repertório de escolhas que já está,
relativamente, pré-definido pela cultura em que ele está imerso. Não devemos
nos esquecer que a música é uma prática social, criada por pessoas para
pessoas. O grau de liberdade que o músico terá dependerá das especificidades da
sua cultura, de suas próprias características pessoais, do tipo e da função da
música com a qual ele trabalhará. Mas, podemos dizer que um artista nunca é tão
original a ponto de subverter a cultura à qual ele pertence. Em maior ou menor
grau, a sociedade/comunidade já definiu previamente um conjunto de
possibilidades dentre as quais um artista pode criar.
Certamente haverá quem questionará esta última colocação
dizendo que encontramos na história da música compositores que transcenderam
sua época, trazendo inovações que levaram essa arte para um novo caminho.
Acredito que tais transformações ocorrem porque há uma pré-disposição geral
para que elas ocorram, não são fruto de um “gênio” que, sozinho, tem um insight
e transforma o mundo. É algo que está ligado a uma época prenhe de
transformações, sendo a música somente mais um desses estopins. A música,
insisto, está no mundo junto com todas as outras áreas da experiência humana,
ela é uma prática social, não é uma mônada,
é influenciada e influencia as demais experiências da humanidade. Mas, esta é
uma conversa para um futuro texto.
Ao nos debruçarmos sobre uma música, se quisermos
compreendê-la mais amplamente, não bastará apenas questionarmos suas
características estritamente musicais (textura, harmonia, ritmo, dinâmica, timbre,
instrumentação/orquestração, organização formal, estilo, história, auto-referencialidade
musical). Há que se perguntar sobre como essa música está posicionada no mundo:
û feita por quem?
û feita para quem?
û feita por intermédio de quem?
û feita para quê?
û feita onde?
û feita quando?
û feita como?
û feita sob quais circunstâncias?
û feita sob qual conjunto de idéias?
û por quê esta música e não outra?
Somente após interpretarmos o conjunto de respostas
relativo às perguntas acima, somada à análise dos conteúdos estritamente
musicais, é que poderemos ter uma maior compreensão a respeito do que é uma
determinada música e como ela se relaciona com seu contexto (inclusive compreenderemos
melhor o porquê das escolhas estritamente musicais que ela carrega em si).
Exemplos de interação
Para ilustrar o que estamos discutindo a partir deste
texto, seguem duas situações hipotéticas envolvendo criação e prática musical a
partir das quais dissecamos algumas relações possíveis com o contexto social e implicações
políticas.
situação 1: adolescente que decide tocar rock com uma banda de
garagem para compor música e colocar nelas suas letras de protesto
Elementos que podemos extrair:
- o rock é uma música
eminentemente comercial, vinculada à indústria cultural. O universo do rock é
uma produção amplamente arquitetada dessa indústria, que conduz (sem que a
maioria de seus aficionados se dêem conta) os hábitos e práticas dessa
“comunidade rockeira” à mercê de seus interesses comerciais. A “atitude”
rockeira está cercada de venda casada de produtos junto com a música (ingressos
de shows, vestuário, livros, discos, cds, bebidas e outros itens mais). Enfim,
é uma cultura de alienação que apresenta grande poder de movimentação de
capital e, por isto, recebe grandes incentivos para sua reprodução (de tal
forma que grandes concertos de rock, mesmo chegando a paralisar a vida em
certos locais de grandes cidades, são amplamente bem recebidos);
- a música de rock é um
grande atrativo para a juventude, pois, além da pulsação rítmica cativante e
possibilidade de extravasar tensões acumuladas, muitas vezes é uma música que
mexe com os sonhos da juventude, trabalha com questões que remetem à afirmação
na vida desses jovens;
- ideologia política:
muitos grupos de rock buscam usar sua música como um veículo de transmissão de
idéias críticas em relação ao cenário político (por meio de suas letras). Isso
é reflexo de uma sociedade repressora, na qual não há um espaço de participação
política aberta a todos, o que motiva as pessoas a buscarem canais alternativos
de manifestarem suas visões de mundo;
- influência de uma
cultura estrangeira (colonialismo cultural): sintoma do imperialismo
estadunidense que ao longo do século XX e principalmente após a II Guerra
Mundial tomou conta do ocidente;
- ausência de uma
educação mais abrangente que poderia ter iniciado esse adolescente
anteriormente no mundo da música para realizar seu desejo de praticá-la. É comum
encontrarmos pessoas que têm gosto por música, mas não tem oportunidade de ser
inseridas nessa prática artística por falta de políticas públicas que lhes ofereçam
possibilidades mais enriquecidas de se viver a vida.
situação 2: compositor erudito, professor universitário, que
escreve uma obra para ser tocada em um evento de música contemporânea
Leituras possíveis:
- a música erudita
contemporânea criou um círculo de proteção que gira em torno das universidades
de música. Dificilmente se consegue uma penetração no meio composicional sem
que a pessoa seja um professor de carreira universitária na área. Ou seja,
protegido por uma instituição que é fruto de políticas públicas, estabelecida
como solidificação do perfil de pensamento estabelecido no ocidente que credita
à ciência o papel de método organizador da sociedade, tal condição cria um
grupo seleto em relação ao qual quem está fora se encontra em situação de
exclusão no meio;
- evento restrito,
reservado a ele e seus pares; há entidades que discriminam (extra-oficialmente)
quem pode e quem não pode participar dos eventos que patrocinam, exercendo um
poder centralizador e fortemente excludente;
- tipo de criação
também determinado pelo ambiente social e por questões de macro política (e não
apenas por critérios artísticos, como comumente é afirmado), pois eventos como
esses precisam de financiamento público (particularmente no Brasil).
Música e Política ao longo da História
Assírios
a música era de grande
importância para os assírios. Tinha uma função social bem destacada, estando
sempre presente nas cerimônias triunfais subsequentes às batalhas vencidas. Os
músicos eram bastante valorizados, tinham prestígio social e econômico. Esse
prestígio valia inclusive para os músicos dos povos conquistados, os quais
tinham suas vidas poupadas e eram integrados à sociedade assíria (uma
significativa exceção, pois os assírios eram conhecidos como um povo
extremamente violento e cruel no trato com os inimigos).
China
na China antiga
entendia-se que a sociedade deveria ser governada por ritos e funções
cerimoniais, sendo que a música desempenhava um papel crucial nesses
cerimoniais, ajudando a governar e conduzir a sociedade. A música não era vista
como entretenimento, e sim como algo muito sério, cujo uso “incorreto” poderia
desestabilizar o Estado.
gregos
há uma ênfase sobre o
“ethos”, ou seja, as qualidades e efeitos morais da música, que lhe garantiam o
poder de alterar a ordem do universo e determinar os rumos da pólis. Platão e
Aristóteles apontam para o uso da música como ferramenta de educação fundamental
na política interna ateniense. Leis sobre o uso da música serão aprovadas tanto
em Atenas quanto em Esparta.
cantochão – estratégia carolíngia
os padres da igreja
cristã medieval vão censurar determinados tipos de música. O império carolíngio
usará a música como poder político, controlando o tipo de música (o cantochão) que
se usava na liturgia como forma de conduzir a população. O cantochão, o canto
da igreja medieval, será um amálgama de música, religião e política.
Reforma e
Contra-Reforma
a música será um dos
pilares das preocupações de Martinho Lutero. A renovação (simplificação) do
canto sacro nas igrejas protestantes, além da questão religiosa, apresenta uma
preocupação com relação à reaproximação com os fiéis, ou seja, é uma
reorganização das relações humanas no interior da nova igreja.
O movimento da
Contra-Reforma se preocupará em buscar uma renovação da música realizada no
universo católico como forma de assegurar seu poder sobre os fiéis diante do
avanço protestante.
São duas formas de
reorganização das relações entre religião, política e música.
Nazismo
a alta cúpula do
Terceiro Reich era composta por amantes de artes. Porém, sua concepção
artística tinha o mesmo caráter conservador de sua visão política. Buscaram
controlar a atividade artística, protegendo os artistas mais conservadores e
perseguindo os que trabalhavam com conceitos de vanguarda, caracterizando-os
como “decadentes”. Entre outras ações, ficou famosa a “Exposição de arte
degenerada”, na qual expuseram lado a lado obras de vanguardistas e fotos de
pacientes de saúde mental. A música de vanguarda recebeu o mesmo tratamento.
Realismo Soviético
na União Soviética,
outra ditadura, também se verificam impulsos para se controlar a atividade
artística. O chamado Realismo Soviético impôs uma barreira à entrada das
influências do ocidente, constrangendo os músicos a produzirem tomando como
matéria prima a música do povo. É notória a contradição entre o controle
imposto dentro do próprio regime, valorizando uma música conservadora e a
produção dos compositores de esquerda espalhados pelo mundo ocidental, os quais
estavam ligados aos movimentos de vanguarda.
EUA
do outro lado do
oceano, no país que se auto-declara como a terra da liberdade, surge no período
da Guerra do Vietnã uma lista de canções a serem desestimuladas, as quais as
rádios preferencialmente não deveriam tocar, para não atrapalhar o incentivo
interno do país na guerra em andamento. Em 2001, após o 11 de setembro, mais
veladamente, se fala novamente em canções que, preferencialmente, não seriam
tocadas nas rádios.
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Cena de banquete ao som de música de aulo. Cerâmica, c. 450 AEC - Fonte: Wikipedia. |
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Antiga gravura chinesa retratando mulheres da corte executando música |
Música erudita e engajamento político
Apesar da difundida tradição de engajamento político dos
chamados músicos populares, há também muitos exemplos de compositores de música
erudita cuja atuação e/ou idéias a respeito da política tiveram destaque.
Vejamos alguns deles:
Frédéric Chopin
há controvérsias sobre
seu posicionamento quanto à causa polonesa. Em seu tempo de vida a Polônia foi
invadida pela Rússia enquanto ele estava na França. Alguns defendem que o
compositor usou sua música como uma resistência em favor da soberania de seu
país, mas há também quem diga que Chopin só estava interessado em propagar seu
nome e sua carreira de músico, sendo esnobe e displicente com seus compatriotas
que estavam no exterior.
Hector Berlioz
empunhou espada e saiu
para a rua para os confrontos do início da década de 1830 em Paris que marcaram
uma nova revolução burguesa em curso.
Franz Liszt
ofereceu concertos cuja
arrecadação foi direcionada para os desalojados em seu país de origem.
Richard Wagner
sua obra e atitudes em
vida apontam para a idéia de uma supremacia germânica, ideal fortemente
propagado naquele país desde Goethe até a primeira metade do século XX; se
alinha com as idéias do Sonderweg, o movimento nacionalista alemão; seu
posicionamento anti-semita também é reflexo de seu tempo
Jean Sibelius
tido como o grande
compositor e figura proeminente no nacionalismo finlandês, tendo colocado sua
música a serviço da independência daquele país em relação à Rússia. É
controversa a relação dele, posteriormente, com a Alemanha nazista, havendo
quem o acuse de fechar os olhos para as atrocidades promovidas pelo regime
alemão em prol de sua bem sucedida carreira naquele país.
Giuseppi Verdi
toma parte ativa nas
lutas pela unificação italiana. Torna-se um membro do congresso daquele país.
É importante dizer que
o Romantismo musical, ao qual todos os compositores acima pertenceram, foi um
movimento de reação ao ideário clássico, fruto do século XVIII, o qual estava
baseado no sistema de idéias daquele período, com enfatização da razão e da
lógica aplicadas à vida humana. Reação esta que não estava somente no campo
artístico, mas sim espalhada por toda a vida européia da época.
Heitor Villa-Lobos
trabalha para o Estado
Novo de Getúlio Vargas. O regime varguista incentivava a realização de grandes
eventos de massa com enfoque disciplinador, civista e nacionalista, exatamente
o que o compositor levou a cabo com o canto orfeônico.
Hans Eisler
compositor de sólida
atuação junto ao Partido Comunista na Alemanha e nos vários países que passou,
sendo que sua música passou a ser fortemente influenciada por temas políticos.
Relação próxima com Bertolt Brecht.
Guerra Peixe
membro do partido
comunista, perseguido, ficou foragido. Assim como Cláudio Santoro, abandona
(temporariamente) as técnicas experimentais para seguir as determinações do Realismo
Soviético após o Congresso de Compositores de Praga.
Cláudio Santoro
integra o Partido
Comunista Brasileiro, posicionamento que o impede de entrar nos EUA, em 1946.
Em 1948 participa do Congresso de Compositores em Praga, retornando ao Brasil e
abandonando as tendências de vanguarda para trabalhar com o nacionalismo em
vigência na época, mais próximo dos ideais propostos pelo Realismo Soviético.
Luigi Nono
Nono é o mais intenso
compositor erudito no uso explícito da música como ferramenta política,
empregando as técnicas mais sofisticadas da vanguarda de seu tempo amalgamadas
à denúncia social e abarcando temas polêmicos da política corrente. Para Nono o
compositor deveria se envolver com a vida, precisava estudar a história,
ampliar suas experiências de vida, estar atualizado com os avanços das
ciências, das tecnologias e das artes de forma a ser um participante ativo na
sociedade. Enfatiza o uso do drama como ferramenta de expressão de suas idéias,
chegando a fazer, inclusive, apresentações de música de vanguarda nas portas
das fábricas.
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Luigi Nono - Riproduzione Riservata - Copyright ANSA - Autor: ? |
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Luigi Nono - Fonte: Zero - autor: ? |
Questões sobre a música e a sociedade
Seria correto considerar a chamada música erudita como
uma manifestação elitista?
Se a resposta for afirmativa, então, como poderíamos
situar essa elite que pratica essa música?
Não é fácil, em nossa época, fazer uma caracterização
estanque sobre essa questão, pois, não necessariamente essa elite é algo
homogêneo. Dificilmente poderíamos enquadrar as mesmas pessoas/grupos de
pessoas no que chamaríamos de elite artística, elite intelectual e elite
econômica.
Vivemos em uma era de radical fragmentação. As pessoas
constroem suas histórias de vida, seus gostos e estilos de maneira heterogênea.
Neste modelo de sociedade pós-moderna que os países centrais impuseram ao mundo
– na qual o foco está na vida do cotidiano – as pessoas já não mais (ou, pelo
menos, não na maioria das vezes) se guiam por identidades majoritárias como
antigamente, construindo (“customizando”) seus perfis de acordo com
preferências individuais e bastante volatilidade (obviamente, nada disso é
espontâneo, pois a fabricação de desejos é algo amplamente manipulado pela
indústria cultural, tendo por trás de si os ferozes tentáculos do poder
econômico).
E nessa miríade de estilos poucas vezes se sintonizam nas
mesmas pessoas o “padrão de excelência” integral dos três âmbitos referidos:
artístico, intelectual e econômico.
Vamos exemplificar. Não necessariamente todos os
indivíduos da classe mais abastada são intelectuais ou ao menos grandes
conhecedores de uma considerável gama de assuntos e conhecedores e/ou
apreciadores e/ou praticantes do que se considera “grande arte”.
Com o predomínio da indústria cultural e a transformação
da música em uma mercadoria como outra qualquer, a imensa maioria das pessoas
(apesar da suposta “liberdade” para construir suas “identidades particulares”)
é levada a ouvir uma pequeníssima variedade de músicas (homogeneizadas e
empobrecidas). Nesse cenário, a diferença de classe não vai se expressar com
relevo no tipo de música que se ouve, mas principalmente nos outros aspectos de
consumo que tem a música como um elemento auxiliar. Ou seja, pessoas com maior
poder aquisitivo vão à restaurantes caros, andam com seus carros importados, frequentam
ambientes de ostentação, mas ainda assim elas ouvem nesses lugares as mesmas
músicas que a população pobre ouve nos ambientes e situações que sua condição
social menos favorecida permite. O que muda de uma classe para outra é a
maneira que as pessoas consomem, mas a música é, na maior parte das vezes, a
mesma.
Embora as diferenças de poder econômico continuem (ou até
tenham piorado) cruéis e flagrantes, nossa época homogeneizou as pessoas pela
cultura, pelo gosto. As pessoas desejam coisas semelhantes, embora seu poder de
aquisição seja diferenciado.
Portanto, mesmo que exista uma elite musical, ela não
necessariamente está alinhada à elite econômica (embora possa estar).
Abre-se aí um hiato difícil de se conciliar: de um lado a
música da indústria cultural, consumida pela imensa maioria da população, tanto
ricos quanto pobres; de outro lado, uma música ouvida por poucos,
constituindo-se numa elite artística.
Os dois lados se olham e se repelem. O primeiro olha para
o outro e enxerga um grupo de esnobes, pedantes. O segundo olha para o primeiro
e se enoja pelo tratamento desrespeitoso daquele quanto à música (como não a
entendem? como a tratam como um simples entretenimento?).
E entre eles, algumas nuanças, como, por exemplo, os
classicistas da música. Consomem música do passado, sem a compreenderem e se
acham respeitáveis, inatingíveis. Tratam a música ainda como um rito
aristocrático, como um privilégio de classe que não é alcançável pelos pobres.
São os assinantes de temporadas de concertos, os que vestem roupas de luxo para
irem às óperas, que vão às salas de concertos para verem e serem vistos, que
acham que música erudita (“clássica”, como diriam) se resume a algumas obras de
J.S.Bach, Mozart, Beethoven e uns poucos mais. A música culta é para eles um
marcador de classe, um artigo de luxo que eles podem comprar e se diferenciar
dos que não podem (e muitas vezes nem querem!). Vão para as salas de concerto
para suspirar com uma música que sequer compreendem. Se lhes pergunta algo
sobre essa música, a única coisa que têm a dizer é que ela é bonita.
A Teoria Crítica
aponta esse consumo da música como resultado de uma alienação coletiva. A
música usada pela indústria cultural como elemento de distração para as massas
para que estas não voltem suas preocupações para outras questões que possam
abalar o sistema estabelecido. Manter o trabalhador entretido no seu horário de
folga entre uma jornada de trabalho e outra.
Entre esses autores, Adorno é bastante pessimista,
apontando a música comercial como um caminho sem saída. Walter Benjamin faz uma
crítica um pouco mais imparcial, refletindo sobre o ganho que a indústria
cultural nos trouxe no sentido de democratizar o acesso às grandes obras de
arte, antes um apanágio de uma pequeníssima parcela da população.
Essas são questões em torno das quais é difícil de se
estabelecer um diálogo. Se por um lado temos a indústria cultural, que trata a
música como uma mera mercadoria (vende-a como se fosse um sabonete), por outro
também não é razoável sustentar o pensamento vanguardista elitista, que
reproduz e naturaliza a eterna discriminação entre os que podem e os que não
podem compreender, uma faceta moribunda dos antigos tempos monárquicos (ou de
todo o sempre da humanidade), que insiste em propagar que algumas pessoas são
melhores que outras.
Em outras palavras, esse impasse pode ser traduzido na
seguinte questão:
Fazer uma música que a sociedade inculta pede (sem
choques) ou fazer uma música que “eleve” o padrão cultural dessa população? Ou
seja, quem deve dizer o que é a música a ser feita, a sociedade ou os
entendidos (músicos)?
É também uma maneira diferente de se perguntar se a
música deve ou não ter um papel de importância em nossa sociedade ocidental. E
isto ela não tem, basta comparar com os breves exemplos de outras civilizações
que citamos acima.
Tensão entre música culta e música popular
Reflexo de tensões sócio-econômico-políticas, a divisão
entre música popular e música culta não é algo simples de se colocar. As
fronteiras entre ambas são bastante permeáveis. Este é um tema o qual os textos
deste blog frequentemente farão referência. Não buscaremos, neste texto
específico, prover nenhuma definição mais aprofundada. Para quem desejar,
começamos a tratar deste assunto no texto abaixo:
Enquanto no universo comercial a música é produzida
explicitamente com o intuito da venda e da espetacularização, no campo erudito/experimental
se busca (ou dizem buscar) uma música que esteja além das garras do capital.
Os vanguardistas vão mais além, se sentem revolucionários
– que não podem ser compreendidos pelas massas (o povo).
Porém, a imensa maioria das pessoas não reconhece essa
música, não tem acesso a ela e não a quer (estão errados?)
São “alienados”, como diria Adorno?
De certa forma, sim, pois reproduzem a lógica do capital
com a música comercial.
No campo da produção de reflexão sobre a música erudita
muito se fala a respeito dos efeitos nefastos da indústria cultural para a
sociedade e particularmente para as artes. A Escola de Frankfurt já citada é
uma referência para o tema.
Por outro lado, faz sentido o elitismo pedante dos
músicos cultos? Será que estes não continuam a reproduzir um modo aristocrático
que data de séculos atrás, segundo o qual sempre tem que haver uma elite de
pouquíssimos elementos que são dotados de conhecimentos e privilégios que a
imensa maioria não possui e não deve possuir?
Certamente não dá para clamar que ouvir música da
indústria, repetir os cânones comerciais que estão por trás dela, possa trazer
algum tipo de esclarecimento para a população. Todavia, se pensarmos que, num
país como o nosso em que educação efetiva é artigo de luxo, não é plausível
pedir que uma pessoa desprovida de recursos mínimos de sobrevivência escute uma
música “com consciência” sem que estejamos praticando uma verdadeira violência
simbólica, como diria Bourdieu.
Ou seja, na música se reproduzem as mesmas barreiras que
encontramos na sociedade: discriminação, elitismo, exclusão dos pobres.
Estas críticas, ao que parece, são menos enfatizadas no
campo erudito da música. Há uma aspiração por se produzir uma música de
excelência custe o que custar, desresponsabilizando-se de qualquer que seja a
situação do mundo fora das fronteiras da música (incontáveis vezes presenciei
professores da área falando que o que acontecia fora dos muros da universidade
não era problema deles e que esses problemas – pessoas – não deveriam incomodar
o andamento da vida dentro da universidade). Prevalece a defesa do que chamam
de “arte por arte”, focando como problema “os outros”, deixando muitas vezes de
questionar a visão de mundo exclusivista do artista.
Mais uma vez reafirmamos, para que não nos tomem de viés,
não há nenhuma intenção de se defender a indústria cultural com este texto.
Pelo contrário, sua intromissão no mundo da arte (dificilmente tolerável, mas
facilmente compreensível, pois é da natureza do capital – dizem os marxistas –
buscar expansão contínua de mercados) traz empobrecimento e desvirtua-a de seu
propósito, procurando transformá-la em um produto de prateleira, simples,
fácil, de consumo rápido e tranquilamente descartável. Tudo que a arte não é.
Porém, não acreditamos no uso maniqueísta que projeta uma
classificação estanque entre música comercial/popular em um extremo e a música
erudita em outro.
Esses universos têm portas abertas e fronteiras
impalpáveis. A música erudita também precisa dos recursos do mercado para ser
viabilizada (embora poucos estejam dispostos a admitir abertamente) e a música
popular nem sempre é previsível e formatada como querem apontar. Uma parcela
significativamente alta da produção da música erudita é baseada em clichês e
voltada apenas para agradar e fazer sucesso enquanto podemos encontrar em
determinados campos da música popular criações que trazem, mesmo que não
“revolucionárias” (palavra desgastada e com pouco vigor em nossos dias), ainda
assim idéias com frescor e interesse.
Antes de finalizarmos este tópico, vejamos o que alguns
autores pensam sobre essas questões.
Pierre Bourdieu
coloca que a música culta é uma forma de discriminação; contraposição e aversão
à música dos pobres.
“Quanto às classes populares, sua única função no sistema das tomadas de posição estética é, certamente, a de contraste e ponto de referência negativo em relação ao qual se definem, de negação em negação, todas as estéticas.” (Pierre Bourdier, A distinção, p. 57-58)
Zygmunt Bauman
aponta em “Mal-estar da pós-modernidade” que as vanguardas fizeram da diferença
e do afastamento do mundo, da maior parte da população, um objetivo a ser
alcançado e não uma fatalidade, como muitas vezes parece.
Em “Modernidade Líquida” o mesmo Bauman também indica que
o pensamento adorniano sobre a música foi baseado numa sociedade que já não é
mais a nossa.
Benjamin, como já citado, denuncia a indústria cultural,
mas é menos cético quanto a ela, apontando que ela, ao menos, possibilitou uma
certa democratização no acesso às obras de arte cultas, antes reservada a uma
parcela selecionadíssima da população
Pensamos, pois, que há alguns pontos de tensionamento que
o tema abordado neste último tópico levanta:
O primeiro, bem discutido, é o caráter mercadológico
aplicado à música pela indústria cultural.
O segundo é que a música popular/comercial é a música
dominante na sociedade, a que é mais ouvida e pela maior parcela da população.
Suas características intrínsecas são conhecidas provavelmente pela totalidade
da população e o que a maioria das pessoas pensa sobre música está associado a
essas características. As pessoas são, majoritariamente, educadas musicalmente
por esse repertório.
Os dois outros pontos se referem à música erudita, pois
no universo dessa música há uma cisão bem marcada. Temos um mercado grande de
consumo ligada ao que chamam de música “clássica” e que se caracteriza pelo
culto à música de uma certa parcela do passado – marcadamente tonal –, numa
atitude notavelmente reacionária que trata a música como um rito aristocrático
semelhante a uma religião, na qual tudo que deveria existir já está dado de
antemão, já existem os compositores adorados e nada mais há para se fazer além
de venerá-los e reproduzir continua e indefinidamente o que já está
solidificado. Sem esquecer que aqui a música é tratada como um artigo de luxo,
“para poucos”.
Na outra ala encontramos a produção experimental, com
compositores, intérpretes e pensadores se debruçando sobre a música do passado
e atual e dando a ela ares de vida, fazendo-a caminhar, suscitando novos
trabalhos. Enfim, caracterizando essa música com o que ela é de verdade, uma
música viva, em contínua transformação e, inevitavelmente, refletindo sua época
atual. No entanto, esta ala frequentemente traz o viés do pedantismo, de achar
que não há nada fora deste universo que mereça ser considerado.
Paradoxo da canção de protesto
A esta altura já podemos retomar o assunto que abriu
nossa conversa. Quando se fala, no senso comum, de música com cunho político,
no fundo coloca-se um interessante contrassenso: seria a música comercial (“alienada”),
dotada de um texto simples (de protesto), apropriada para ser entendida como
música de combate ao capital instituído?
Ou seja, é plausível considerar que uma música que está
nas “garras do capital”, que o reproduz – por ser música comercial – ao mesmo
tempo é usada como sinônimo de “música política”?
A base desse mal entendido é a confusão que se tem quanto
às dimensões que a música possui. É uma questão que explicita nossa deficiência
em educação musical, nossa não-democracia...no fundo, também aponta para uma
questão de cunho político.
A maior parte das pessoas não recebe educação em música (a
educação musical não está presente no currículo das escolas públicas) e,
portanto, não a compreende formalmente. Para elas, música é apenas a canção
simples, na maior parte das vezes de poucos acordes, veiculada nos meios de
comunicação de massa (como uma mercadoria qualquer).
No outro extremo também temos que dizer que, obviamente,
formação em música não garante compreensão da mesma. A música é um fenômeno
polissêmico, possui diversas interpretações e sua compreensão extrapola o campo
estrito da musicologia. Afinal, a música não é um privilégio de eruditos do
assunto, ela é uma experiência que está ao alcance de todos que dela extraem
algum prazer.
Muito mais que uma canção
Se na política palavras podem ser progressistas e
transformadoras, na música propriamente dita seu uso não garante nada, pois
palavras e sons são de natureza diferente.
Adicionar um texto inspirado em um grande pensamento a
uma música qualquer não significa, em nenhuma hipótese, estar fazendo uma
música “revolucionária”. Na melhor das hipóteses estaria fazendo um texto
“revolucionário”, mas a música propriamente está sendo deixada em segundo
plano.
Os meios de se alcançar algo mais “evoluído” em termos
sociais com a música não se materializam no uso dela como veículo para outro
tipo de manifestação. Isso é usá-la como representante de outra coisa, e essa
não é a melhor forma de aproveitar a música para se transformar a sociedade.
“Deveríamos remeter tudo a causas imediatamente sociais, à decadência da burguesia, cujo meio artístico mais caracterizado foi a música (...). Esta é uma tendência estreitamente ligada àquela de abraçar o partido da totalidade, o partido da tendência geral e de condenar tudo aquilo que não se adapta a ele. A arte se converte em mero representante da sociedade e não em estímulo à mudança dessa sociedade; aprova desta maneira essa evolução da consciência burguesa que reduz toda imagem espiritual a simples função, a uma entidade que existe somente para outra coisa, e, em suma , a um artigo de consumo.” (Adorno, Filosofia da nova música, p. 29)
Embora esteja conectada às demais áreas da experiência
humana e tenha grande simbiose com outras artes, ainda assim a música tem uma
realidade própria. Ela guarda características que são intrinsecamente musicais
e, por isso, não deve ser tratada como subalterna de outro meio de expressão.
Ou seja, por mais rica que possa ser a relação entre som e texto, como no
exemplo das canções, ainda assim a música é independente da literatura.
Por outro lado, o uso deste ou daquele recurso musical
aponta para alguma conexão com o meio do qual ela surge. Por exemplo, o sistema
tonal erigido no ocidente se consolida exatamente na mesma época da ascensão
das idéias iluministas. Uma música que busca se fundamentar no princípio da
razão para uma época que busca o mesmo princípio. O futuro de ambas também
seria o mesmo: lógica tecnicista, padronização, controle, castração da
liberdade criativa.
* * *
Música e política guardam relações profundas e ricas,
conforme este texto procurou demonstrar.
A tradição das canções de protesto possui uma enorme
importância e reconhecimento quando se trata desse assunto. Porém, no interior
do universo musical há muitos outros pontos relacionados aos elementos
estritamente musicais e às relações sociais entre os músicos que ampliam
significativamente os pontos de contato entre os dois campos.
Quando um compositor se coloca a escrever, ele faz
escolhas que extrapolam o campo estético. Escolher qual escala, qual harmonia,
para quem, para qual ocasião, qual estilo e tipo de música se referir carregam também
consigo posicionamentos políticos.
Como é possível vislumbrar, este é um tema muito amplo e
esta é apenas uma abordagem inicial a seu respeito. Inevitavelmente
continuaremos a nos encontrar com ele ao longo dos textos, seja de forma direta
ou tangencialmente.
REFERÊNCIAS
Música
e iconografia entre os assírios
Katia Maria Paim Pozzer
Simone Silva da Silva
Fábio Vergara Cerqueira
Annablume
O
poder simbólico
Pierre Bourdieu
Bertrand Brasil
A
distinção
Pierre
Bourdieu
Zouk
Wagner & Politics
Bernard
Williams
http://www.nybooks.com/articles/2000/11/02/wagner-politics/
Verdi the revolutionary?
Let's separate fact from fiction
Roger Parker
https://www.theguardian.com/music/2013/oct/07/verdi-the-revolutionary-separate-fact-from-fiction
Robert Schumann: A Magellan of the Interior
John C. Tibbetts
http://www.johnctibbetts.com/World%20of%20Robert%20Schumann/assets/article_intro.htm
John C. Tibbetts
http://www.johnctibbetts.com/World%20of%20Robert%20Schumann/assets/article_intro.htm
The responsibility of an artist
Veijo
Murtomäki
https://fmq.fi/articles/the-responsibility-of-an-artist
Filosofia
da nova música
T.W. Adorno
Perspectiva
A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
Walter Benjamin
Brasiliense
O
mal-estar da pós-modernidade
Zygmunt Bauman
Jorge Zahar
Modernidade
Líquida
Zygmunt Bauman
Jorge Zahar
PERSONAGENS E CONCEITOS
Indústria cultural
termo cunhado por Adorno e Horkheimer
na obra “Dialética do Esclarecimento”, de 1944. Designa a transposição da
lógica industrial para o mundo da arte, dando como resultado uma arte voltada
para o lucro, padronizada e com pouca liberdade de criação. O que surge daí é
uma cultura massificada, com produção de arte de baixa qualidade e um
consequente embotamento da sensibilidade e do gosto geral. Mais amplamente, a
indústria cultural, fortemente viva em nossos dias, é um instrumento de
alienação, de imposição dos interesses das classes dominantes sobre os
dominados. É a subversão da racionalidade técnica – que os iluministas
acreditavam que libertaria a humanidade das crenças e superstições –, agora
transformada em um mecanismo de dominação.
Mônada
conceito central na filosofia de Leibniz
que se refere a uma substância simples, indivisível, de caráter único e que,
embora tome parte nos compostos, se basta a si própria.
Teoria Crítica
refere-se aos estudos dos filósofos
da chamada Escola de Frankfurt, de abordagem marxista e interdisciplinar.
Opõe-se à teoria tradicional por analisar as condições sócio-políticas e
econômicas de sua aplicação de forma a propor uma transformação da realidade.
Entre seus principais representantes estão T.W. Adorno, Max Horkheimer, Walter
Benjamin, Herbert Marcuse, Erich Fromm e Jürgen Habermas.
Pierre Bourdieu
sociólogo francês (1930-2002),
considerado um dos grandes pensadores do século passado. Sua obra é fortemente
focada na questão da dominação. Trabalha com três conceitos chave: campo,
habitus e capital. Em sua reflexão os condicionamentos materiais e simbólicos
agem sobre a sociedade e os indivíduos em uma complexa relação de
interdependência.
Zygmunt Baumann
sociólogo polonês (1925-2017), um
dos principais pensadores da atualidade, criador do conceito da “Modernidade
Líquida” como correspondente ao estado atual gerado pelas transformações
políticas e econômicas trazidas pelo capitalismo globalizado. Notável por sua
capacidade de realizar uma crítica pungente e bem construída utilizando-se de
uma linguagem simples e acessível.
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