Cinema Noir, Mixologia e Mistério

            A coquetelaria ou mixologia é uma magnífica arte que ainda não recebeu o devido reconhecimento.
            Entre os cinco sentidos humanos, visão e audição constituíram artes bem estabelecidas e estruturadas enquanto os sentidos do tato, do olfato e da gustação ficaram hierarquizados num patamar mais abaixo no mundo das artes.
            É assim que se nomearam as belas artes a partir do século XVIII: música, dança, pintura, escultura, arquitetura e poesia. No século XX o cinema foi incorporado a esse seleto grupo, tornando-se a sétima das belas artes.
            A gastronomia já possui certa notoriedade (no início do sec. XIX já possuía uma obra de referência a seu respeito, “Fisiologia do gosto”, de Brillat-Savarin, verdadeiro tratado de filosofia e gastronomia) e em nossos dias vemos, inclusive, um crescimento mesmo no número de cursos universitários oferecidos nessa área, para não dizer dos vários programas de tv que promovem a figura do(a) chef.
            Porém, a mixologia está bem atrás em termos de reconhecimento. É ainda tratada como uma arte marginalizada.
            Isso em certa medida se deve ao potencial desagregador e destrutivo que o álcool apresenta quando consumido de forma descontrolada, o que, de certa forma, é injusto pois a gastronomia também pode ser prejudicial. Uma alimentação não balanceada vai trazer prejuízos para o organismo ao médio/longo prazo. Enfermidades que são verdadeiras epidemias ligadas ao estilo de vida ocidental atual, como o diabetes mellitus tipo 2 e a hipertensão arterial, apresentam ligação estreita com uma alimentação com excesso de determinados nutrientes em detrimento de outros. Isso para não falar dos problemas que nos geram o uso de agrotóxicos no campo ou dos outros produtos químicos aplicados aos alimentos de origem industrial. Grande parte dos problemas da vida não estão relacionados ao que fazemos e sim à quantidade e qualidade do que fazemos. Alimentação balanceada e em quantidade moderada faz bem. Em excesso não faz. Álcool em baixa dosagem não faz mal na maior parte dos casos e, aliás, é fator de proteção para algumas doenças! O desequilíbrio é o problema.


          
            Para quem está estranhando o termo, mixologia é a coquetelaria de sempre, a arte de combinar bebidas e outros ingredientes, mas praticada de uma forma, digamos, mais consciente. Os mixólogos são bartenders (ou barmen) “estudiosos”, que procuram conhecer mais a fundo seu objeto de trabalho, aprendendo sobre as características dos destilados, frutas, especiarias, ervas e demais ingredientes que podem compor um coquetel e seus efeitos no degustador. Desta forma, os mixólogos são também mais ousados, experimentam diversas combinações para antigos coquetéis e criam mais livremente novos coquetéis. Essa busca por novas experiências gustativas trouxe elementos novos para dentro do bar, como ervas e frutas exóticas, diversos legumes e especiarias, sem contar a mixologia molecular. Esta é a versão para o bar daquilo que é a gastronomia molecular, que se apropria de conhecimentos químicos e físicos para transformar os alimentos e também a sensação que eles produzem para os sentidos humanos. Criada pelo físico Nicholas Kurti e pelo químico Hervé This, essa prática tornou-se mundialmente famosa pelas mãos do chef catalão Ferran Adrià, que busca com ela trazer sabores e texturas incomuns para seus pratos.

gastronomia molecular

mixologia molecular


            Os EUA são o grande país da coquetelaria. Lá se desenvolveu uma forte cultura em torno dos coquetéis. Já no sec. XIX existiam diversos estudiosos trabalhando e escrevendo a respeito do tema, como Jerry Thomas, um mestre dessa arte que em 1862 publicou seu Bartenders Guide: how to mix drinks.



            O cinema hollywoodiano assimilou essa cultura desde cedo e até nossos dias mantém esse profícuo diálogo com a arte das bebidas.
            Não é preciso vasculhar muito a memória para trazer algum exemplo de filme estadunidense que tenha alguma cena famosa envolvendo o mundo do bar e dos coquetéis:

  • James Bond e sua predileção pelo Vodca Martini “shaken, not stirred” (batido, não mexido) e a cena primorosa de “Casino Royale”, no qual 007 inventa uma variante para o Martini – o rei dos coquetéis – designando-o posteriormente como Vesper Martini;


  •        os “saloons” dos filmes de Western;



  •      Tom Cruise nos anos de 1980, vivendo o personagem Brian Flanagan (nome emblemático na história da coquetelaria), um barman fazendo seu caminho dentro da profissão;

  •       Chinatown, um dos maiores filmes da história, no qual Evelyn Mulwray – a femme fatale, típica do cinema noir – pede um Tom Collins “with lime, not lemon” (com limão, não limão siciliano). [Tom Collins é um coquetel clássico, constituído de gin, limão siciliano, açúcar e club soda ou água com gás];

  •       o igualmente notável e inesquecível Casablanca tem como cenário principal o Rick’s Café Américain.


             A mixologia envolve fortemente três de nossos sentidos: gustação, olfato e visão. Um coquetel é um espetáculo para nossos olhos, a riqueza de cores das bebidas e demais ingredientes os faz não apenas acessórios, mas também parte fundamental da obra de arte múltipla que ele é. Os aromas são realçadores daquilo que vemos e degustamos, funcionando como enriquecedor do conjunto ou mesmo como elemento surpresa em alguns casos em que engana previamente o paladar.


Killer in Red

            No início deste ano de 2017, o grupo Campari lançou uma campanha publicitária a qual se constituiu de alguns vídeos breves e de um filme de curta-metragem para promover seu mais tradicional produto, o bitter Campari.
            O curta-metragem, Killer in Red, foi dirigido por ninguém menos que Paolo Sorrentino e é um elogio à figura do bartender/mixologista.


            O filme trouxe a marca do cineasta. Por exemplo, é possível ver ecos de A Grande Beleza na filmagem do bar que, enquanto dança e música estão aquecendo os frequentadores, ele faz uma tomada rápida da noite na cidade lá fora (com alteração do volume e da qualidade do som, dando a impressão de que o som interno do bar estava sendo ouvido da parte de fora). Igualmente relembramos de seu grande filme nos “rallentandos” que ele faz com as imagens.
            A arte “culta” não perde oportunidade para apontar que um dos obstáculos para a grande arte em nosso tempo é a indústria cultural que, com sua voracidade advinda do fluxo inesgotável do capital em constante busca de novos mercados e novos meios de multiplicar os ganhos (como diriam os marxistas), invadiu o campo das “coisas do espírito” lançando sobre ele as garras de sua racionalidade técnica. Ou seja, trazendo a lógica da mercadoria para as obras de arte, procurando transformá-las em produtos com valor de mercado.
           Este filme da Campari nos dá uma grande lição, construindo uma produção de grande interesse, através da qual promove, sim, sua marca, porém, de forma discreta e  criando um produto com qualidade artística que merece respeito.
            Em primeiro lugar por chamarem um cineasta do porte do Paolo Sorrentino (para mim o grande cineasta da década, até o momento). E o filme, um curta, que constrói uma história cativante, com elementos do cinema noir, “aromatizado” com toques sorrentinianos e um lindo elogio à figura do barman, esse verdadeiro alquimista dos “espíritos” (bebidas destiladas).
            Não necessariamente uma obra construída com intenções comerciais deve ser de qualidade baixa, com teor massificante.
            Assim como o filme Cocktail, mencionado acima, Killer in Red traz a figura do barman como centro das atenções. Porém, enquanto o filme estrelado por Tom Cruise conta uma história com bastante verossimilhança, o curta-metragem de Sorrentino é muito mais imaginativo, convidando-nos a sonhar com a figura quase mítica de Floyd e seus coquetéis acompanhados de histórias.
            As imagens, as cores, o bar, as cenas faladas sem música com seu silêncio pleno de sentidos e a figura da femme fatale, comum ao cinema noir trazem um ar de mistério e atração para o filme.
            As cenas com danças em movimento desacelerado (rallentadas) dão a impressão de um intermezzo na história, em um outro tempo, característica que evoca a música, como num divertimento construído para ligar duas partes separadas.
            O barman, personagem principal da história, é procurado pelas mulheres que aportam ao bar curiosas pelos boatos que se espalham sobre ele ler os destinos delas através dos significados dos coquetéis que ele prepara. Incorpora um papel de alquimista, mago, vidente.
    
       
O coquetel Killer in Red

            A entrada da femme fatale provoca o insight em Floyd que o leva à criação do coquetel que dá nome ao filme.
            É o momento em que as luzes da noite brilham sobre o artista dos bares, mostrando sua capacidade de criação e improvisação...como um jazzista, nos domínios da noite, em um club de jazz, cercado por ouvidos atentos, destila seu saber musical, fazendo jorrar complexos de sons que preenchem e inebriam os corações e mentes pulsantes.
            O coquetel, por sua vez, tem uma estrutura complexa. Mantém uma base tradicional aparentada aos Martinis, com gin e vermute, acompanhados de um grande licor. Além dessa base, está o Campari, que é a estrela do coquetel, trazendo seu amargor característico e a notória cor vermelha.
            É um coquetel ricamente elaborado, apresentando um contraste do amargor do Campari contra o dulçor do vermute bianco e do Grand Marnier, como se fosse num drama operístico ou na contraposição dos temas contrastantes de uma sinfonia, que criam através do choque de duas naturezas diferentes o fio condutor da estética da obra (“se a doçura prevalecer...”).
            No aspecto visual, como já dito, prevalece o vermelho (“Killer in Red”) do Campari.
            O aspecto olfativo é também ricamente elaborado, combinando o herbáceo da camomila amalgamado ao zimbro do gin com a essência de rosas, esta última trazendo uma evocação da figura da femme fatale.
            Enfim, um coquetel completo e que evoca em sua estrutura uma síntese da história do filme.
      
     
O curta-metragem e o coquetel

            O filme gira em torno do coquetel. A cena da criação e preparação do Killer in Red se situa na metade da duração do curta-metragem, dando a ela um papel central na estrutura do filme, à qual tudo converge e da qual tudo emana dentro do enredo.
            Da mesma forma como o bar está localizado no centro da casa noturna, sendo o elemento principal, para o qual todos os olhares se voltam e que movimenta a “balada”.
            A beleza plástica da cena remete também àquelas histórias que sempre ouvimos sobre o grande artista e sua musa inspiradora...a modelo de uma grande pintura, a inspiração para uma canção de um trovador...
            Sorrentino lava a alma da mixologia elevando o bartender/mixólogo àquilo que ele muitas vezes, injustamente, não é reconhecido: um grande artista!
        
   
Paixão e enigma

            Além do mistério e da femme fatale, o tema do assassinato é outra característica presente em “Killer in Red” que evoca o cinema noir.
            Passado e presente se misturam na trama, assim como as músicas, que são de épocas diferentes. A música central é “The magnificent seven”, uma canção do grupo punk The Clash, de 1980. Tocam também músicas ambiente no bar que são mais aparentadas à “Lounge Music”, uma tendência que fez sucesso na primeira metade dos anos 2000, tendo como cenário principal bares como o do curta-metragem.
            Esse transitar entre tempos que os dois personagens interpretados pelo mesmo ator fazem aumenta o clima de mistério que paira no filme, típico de cinema Noir, dando uma “aura” de infinidade para a história. Seriam eles o mesmo personagem?
            É uma história que não se fecha totalmente. O que acontece para o barman?
            Há algo de surreal, um sutil toque de fantástico pincelado ao final, envolvendo o personagem do início do filme e Floyd, algo que eu compararia com a obra do holandês Maurits Cornelis Escher, cujas gravuras nos passam uma impressão superficial de “normalidade”, mas que, quando olhadas com maior atenção, revelam situações e elementos inverossímeis.


            Assim como Escher, Sorrentino nos balança a sensação do real, do tempo linear, fazendo-nos perguntar o que é o passado e o que é o presente no filme. O personagem fez um salto no tempo?
            Essa sensação de deslocamento, que nos tira o chão, balançando nossa percepção “segura” do tempo linear da vida do cotidiano, possível graças ao poder da arte de propor realidades múltiplas (além do que existe, do que é, a arte nos propõe perguntar sobre o que poderia ser – daí sua importância em nossas vidas, nos possibilitando a capacidade de sonhar, imaginar, ou mesmo efetivamente criar novas realidades), traz uma impressão de um tempo infinito ou circular, no qual o personagem permeia passado e presente. Temática semelhante foi imortalizada nas telas do cinema com o filme “Em algum lugar do passado”, de 1980, no qual a história nos deixa perante um drama que aponta para o infinito.
            Abordamos em um texto anterior a questão da experiência da passagem do tempo na música e aqui encontramos com essa temática tendo papel importante também no cinema.


            O clima de mistério é reforçado com a imagem da mansão ao final do filme, na cena da piscina. O silêncio e o vazio da cena fazem lembrar a Pintura Metafísica de Giorgio de Chirico.


            Encontramos em ambos o gosto pelo enigma.

            Sorrentino traz para o curta Killer in Red a magia de seu olhar cinematográfico com o qual ele encantou o mundo com suas duas grandes obras, A Grande Beleza e A juventude.
            Nas pequenas dimensões de um curta-metragem ele consegue elaborar uma trama concisa/aforística, repleta de elementos de referência a outras artes e à cultura geral que nos fazem sentir e refletir por horas, dias, mesmo meses, após tê-lo assistido.
            Uma jóia, uma verdadeira obra-prima.



REFERÊNCIAS

De Chirico
autor: Magdalena Holzhey
Taschen



PERSONAGENS

Cinema Noir
            subgênero de filme policial, de origem estadunidense e que teve seu auge na década de 1940. Resulta de uma combinação de estilos e gêneros de cinema e das artes plásticas. Entre essas influências estão o cinema expressionista alemão, o realismo poético francês e o neorrealismo italiano. Sua influência sobre a sétima arte extrapolou a fronteira dos EUA e se estende até nossos dias. Filme em preto e branco, forte contraste entre claro e escuro, cenários noturnos, interiores sombrios, ambientes urbanos, casas noturnas, clubes de jogos, moralidade ambígua, fatalismo, dramas inteligentes e austeros, desconfiança, cinismo, paranoia, narração confessional, anti-heróis impiedosos e não sentimentais, homens solitários, inseguros, desiludidos, mulheres dóceis e amáveis ou femmes fatales (deslumbrantes, misteriosas, ambíguas e oportunistas dispostas a qualquer coisa para se darem bem), crimes, assassinatos, policiais corruptos, são alguns dos elementos presentes em boa parte dos filmes noir.

Giorgio de Chirico
            pintor nascido na Grécia (1888-1978), criador da Pintura Metafísica. Influenciado pela declaração de Nietzsche da “morte de Deus”, o pintor baseia sua Pintura Metafísica na busca da qualidade enigmática dos fenômenos terrenos a partir do interior das coisas deste mundo, não em outra dimensão. Foca na experiência da arquitetura, valorizando a maneira pela qual a arquitetura é sentida. De Chirico influencia o dadaísmo e é precursor do surrealismo.


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